O mistério da iniquidade da guerra

Foi esta uma expressão usada pelo Papa Francisco na oração pela paz no dia 25 de março de 2022. O que é a iniquidade da guerra?

Por M. Correia Fernandes

Temos refletido nestas páginas sobre uma tal dimensão da condição humana. Em texto publicado no ano transato, levantávamos o problema da linguagem bélica, que induz a prática belicista, lembrando um subconsciente ínsito nos nossos conceitos e na nossa linguagem que definem ou supõem o relacionamento social: o conflito de interesses ou de afirmações pessoais ou de grupo. Como sucede nos conflitos humanos entre o capital e o trabalho, entre patrões e operários, entre sindicatos e organizações patronais, entre estruturas sociais diversificadas que entram em conflito – a tendência é para as entendermos como opostas e não como entidades colaborantes para a equilibrada organização social e para a convivência pacífica entre os seus membros e as suas funções complementares. O mesmo se diga do espírito que enforma as relações entre governos e oposições: têm no subconsciente o espírito bélico. Igualmente as ações bélicas do século XX (e de todos os séculos anteriores), as intervenções de alguns países sobre outros, com realce para a insensata ação das tropas americanas em espaços mundiais como o Vietnam ou o Médio Oriente nos façam agora nascer e exercitar o conceito de guerra. Parece que este espírito de confronto, nascido das teorias revolucionárias dos inícios do século XX, como a violência revolucionária de 1917 ou a violência nazi de 1940, transmitiram-se agora, como o vírus ao entendimento e à linguagem. A qual acabou por engendrar a guerra real. Nada está em ação que primeiro não esteja no espírito ou no subconsciente mental e cultural.

Ora é este subconsciente belicista que engendra “o mistério da iniquidade da guerra”. No anterior editorial, Jorge Cunha lembrava “o caminho do perdão e da não violência como forma de pacificar os conflitos”, e “uma proposta de vida sensata para onde se devem dirigir as nossas ações”. Ora verificamos justamente o inverso; que perante uma agressão bélica os responsáveis utilizam uma linguagem que contribui como estímulo para ação bélica em vez de a minorar. As declarações do presidente dos Estados Unidos, em lugar de apelos de pacificação, foram apelos de confrontação. Os bispos italianos falavam, a respeito do combate à pandemia, de “reforçar o espírito de solidariedade”.

Na continuidade dos seus múltiplos e lancinantes apelos, o papa Francisco, no domingo 27 de março,  apelava “Que se parem, que se calem as armas, e se negoceie seriamente para a paz”, evidenciando aquilo que todos vamos sentindo e que parece que todos os beligerantes esquecem:  “A guerra não devasta apenas o presente, mas também o futuro de uma sociedade”, e “representa uma derrota para todos, para todos nós”, para toda a Humanidade, lembrando que na guerra “pais e mães sepultam os filhos, homens matam os seus irmãos, onde os poderosos decidem e os pobres morrem”.

E foi ainda mais concludente: “Eis a bestialidade da guerra, ato bárbaro e sacrílego. A guerra não pode ser algo de inevitável, não devemos habituar-nos à guerra, temos de transformar a indignação de hoje no compromisso de amanhã”.

Confrontamos estas palavras com a “temerosa desconsolação” de que falava António Vieira a propósito da guerra, lembrando que” Todas as guerras deste mundo se fazem a fim de conseguir a paz: mas a paz não se conquista com exércitos, senão com igualdade de justiça. A desigualdade é a causa da mais perigosa guerra”.  Medite-se também na observação vieiriana: “o maior perigo da guerra é cuidarem os doutores desta arte que sabem tudo”. Ou que podem tudo!

É também essencial ter-se em conta que a consciencialização através da oração e da prece, e da consagração a Maria realizada em Roma e Fátima, como afirma o papa: “Não se trata duma fórmula mágica, mas dum ato espiritual. É o gesto da entrega plena dos filhos que, na tribulação desta guerra cruel e insensata que ameaça o mundo, recorrem à Mãe, como as crianças, quando estão assustadas”.

Não há fórmulas mágicas, há palavras e gestos de prece e conciliação. Palavras não de nova confrontação, mas de superação das confrontações, formas de diálogo e de consciência interior, formas de sentido espiritual, que se devem traduzir nas palavras para que estas gerem ações, na linguagem para que esta conduza a comportamentos.

Com efeito, o grande mal é que os doutores desta arte pensam que sabem tudo e agem como se soubessem, e daí nasce o erro e a violência.

Assumamos o que nos diz o texto que publicamos dos teólogos ortodoxos: construamos “a unidade do espírito pelo vínculo da paz” (Efésios 4,3).