Uma leitura do filme “Assassino Profissional”
Por Alexandre Freire Duarte
Eis uma obra que fui ver “arrastado”, a conselho de ex-alunos. E que espanto foi o resultado desse “arrastar”. Este filme talvez seja uma das gemas do ano, com a sua mistura genial e perfeita de géneros, desde o psicológico filosófico, o policial casual, a ação esplêndida, a comédia inteligente até ao romance tórrido. Oscilando com perícia entre o simples das peripécias absurdas e o profundo do fantasioso intrincado, uma coisa é certa: o divertimento de qualidade está garantido, pondo-nos a pensar ao ritmo de uma boa dose de boa-disposição não intrusiva. Que pena que não haja mais filmes como este.
Powell brilha. E que brilho! Tudo o que faz catapulta-o para o panteão dos mais excelentes atores, expelindo talento, carisma e empatia numa espécie de contínuo truque de ilusionismo. O fascínio da sua interação, repleta de sensualidade sincera, com Arjona parece um contentor de TNT de mútuo sex appeal prestes a explodir (mas sem ferir). Os demais atores também ajudam ao produto final, mas tudo se apoia naquela interação.
Teologicamente, eis-nos novamente ante uma questão antiquíssima: quem somos? Uma (mera) construção resultante dos diversos papeis que tivemos que, ou quisemos ir assumindo ao longo da vida, ou, então, algo de mais perene e consistente, com ou sem o influxo daquela construção? Esta obra mostra-nos uma possível resposta a esta pergunta a ser atualizada diante dos olhos e, não obstante, a interrogação persiste: somos o produto de subterfúgios na rutura nietzschiana da auto-libertação fantasiosa ou algo mais real, mais íntimo e impossível de descrever pois escapa-se-nos como o infinito que é?
Como cristãos acreditamos que o que nos define é o nosso coração-a-coração com Deus, mediado (graças à Sua vontade e à nossa natureza) pelo que fazemos em prol dos demais. Sim: quer Deus, quer os demais são marcadores da nossa identidade, que deveria ser pautada, não por uma ficção movediça segundo sopram as areias, mas pelo ajudar os demais a descobrirem quem é que são. Pelo ajudá-los: a verem sem escamas nos olhos; a amarem sem afeções desordenadas; e a ascenderem com os pés bem firmes no chão.
O que não humaniza seca e acaba a ser soprado como aquelas areias, mas no humanizarmos tocamos o dom de sermos feitos apenas pelo, no e no para o amor. Não nos defendamos quando nos entregamos a isto; não sejamos contra o que quer que seja (exceto o desamor, mas a ser vivido com a paz que vem de o depositarmos nas mãos do Senhor), mas sempre pró-humanidade, pois esse foi o próprio encargo que nos foi dado por Jesus – o Caminho da dita humanização a ser vivida com amor recetivo e ativo.
Também não aprisionemos o que está correto, o sal ou a luz. Dêmo-los, conquanto amemos sempre a nossa vida – esse primeiro grande dom que Deus nos deu. Esse Deus-Amor que, sendo o mais íntimo de nós e dos demais, é Outro, mas não “um outro”, fazendo, assim, de todos aqueles com quem nos cruzamos uma “célula” das nossas próprias pessoas. E isto, numa liberdade que não é um “fazer o que nos dá na real gana”, mas uma voluntária obediência ao amor, sendo, consequentemente, um querer, uma busca e uma doação que unifica. E se o é, é porque está isenta de toda a “constipação” moral que é tão inconveniente como a corporal, pois impede de se ver o Bem em tudo.
(EUA; 2023; dirigido por Richard Linklater; com Glen Powell, Adria Arjona, Retta, Austin Amelio, Molly Bernard e Mike Markoff)