Dos Clérigos a Camões: um percurso de sugestões

Por M. Correia Fernandes

Uma relação oportuna entre Luís de Camões (1525-1580) e o universo em torno da torre dos clérigos, recentemente em caminhos de novas propostas, decorre da celebração dos 500 anos do nascimento do épico, que terá ocorrido entre 1524 e 1525, ou antes, embora a documentação sobre o facto seja duvidosa, tal como o local do nascimento, habitualmente dado como ocorrido em Lisboa, mas que até há quem o queira colocar nas proximidades de Chaves (Vilar de Nantes). Qualquer indício é sugestivo para quem procura.

A relação, não física mas cultural, entre o Porto e o poeta, na sua essencial presença textual e histórica,  constitui a motivação desta iniciativa da Irmandade dos Clérigos, que residiu na presença de um exemplar da primeira e dição de Os Lusíadas (1572), pertencente à Biblioteca do Ateneu Comercial do Porto, tida como um dos exemplares da edição prínceps com carácter de autenticidade, tal como foi considerada pela professora Rita Marnoto, que a apresentou em encontro realizado na igreja dos Clérigos, em que analisou os processos da existência de várias versões da primeira edição, verdadeiras ou reformuladas. Lembra-se também a referência à cidade do Porto, no Canto VI de Os Lusíadas, estrofe 52, em que afirma “Lá na leal Cidade donde teve / origem (como é fama) o nome eterno/ de Portugal”, e fala de “partir do Douro celebrado” na vontade do Magriço que quer “ver mais águas que as do Douro e Tejo”.

A edição exibida na exposição dos Clérigos é um dos mais de trinta exemplares existentes em Bibliotecas, como a Biblioteca Nacional, a Biblioteca Pública Municipal do Porto ou a Biblioteca Nacional de Madrid. É sabido que se verificaram várias alterações da edição original, com a indicação de “Em casa de António Gonçalves, 1572”,muitas delas contrafeitas e modificadas. O caso mais conhecido é o do frontispício, do qual há duas versões: uma com o pelicano voltado para a esquerda e em outra voltado para a direita.

No universo dos objetos significativos em exposição, encontram também uma edição datada de 1580, comemorativa do 3.º centenário da morte do poeta, e um busto criado também para as comemorações do 3.º centenário de Camões, em gesso pintado, esculpido por Soares dos Reis, com a colaboração de Marques Guimarães, para o ateneu Comercial do Porto.

Tudo isto constitui uma oportunidade favorável para que os visitantes lembrem a obra do épico, associada ao espaço arquitectónico da igreja dos Clérigos.

A edição apresentada está aberta no início do central Canto V, considerado e canto marítimo por excelência: é a vida dos marinheira e as suas experiências que ali surgem, ao contacto com os novos espaços do mar, primeiro o Atlântico, depois o Índico, em descrições de rara beleza, desde a despedida, a partida e o desaparecer da serra de Sintra, até aos fenómenos marítimos com o fogo de Santelmo, a tromba de água ou o aparecimento do Adamastor, uma das grandes criações do poeta.

No poema se pode encontrar toda a sabedoria do tempo, desde a realidade geográfica até às realidades da cultura: os espaços, os mitos e a História de que eram feitos ou de que são interpretação, os costumes, a geografia do mundo, e aquela extraordinária riqueza de pensamento e de sabedoria que envolve toda a visão do universo.

Vale a pena recordar alguns desses versos magistrais que deverão povoar a nossa memória de aprendizagem, mas que se perdem nos meandros físicos ou tecnológicos da vida.

1 A partida:

Já a vista pouco a pouco se desterra

Daqueles pátrios montes que ficavam;

Ficava o Tejo e a fresca serra

De Sintra, e nela os olhos se alongavam;

Ficava-nos também na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam;

E já depois que toda se escondeu,

Não vimos mais enfim que mar e céu.

 

Assim fomos abrindo os mares

Que geração alguma abriu… (est. 3-4)

 

2 O fogo de Santelmo e tromba marítima

 

Os casos vi, que os rudos marinheiros

Que têm por mestra a dura experiência,

Contam por certos sempre e verdadeiros…

Vi claramente visto o lume viso

Qua e a marítima gente tem por santo…

Não menos foi a todos excessivo

Milagre, e coisa certo de mor espanto,

Ver as nuvens do mar com largo cano

Sorver as altas águas do oceano. (est. 17-18)

 

3 A personificação do grande cabo

Eu sou aquele oculto e grande cabo

A que chamais vós outros Tormentório,

Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,

Plínio e quantos passaram foi notório… (est. 50)

 

Assim contava, e cum medonho choro
Súbito de ante os olhos se apartou;

Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro

Bramido muito longe o mar soou…  (est. 60)

 

4 A concussão

E haveria que reter as palavras lamentosas da estrofe 154 do mais extenso canto do poema, o canto décimo, com a referência bíblica da sabedoria das crianças:

 

Mas que falo eu, humilde, baixo e rudo,

De vós não conhecido nem sonhado?

Da boca dos humildes sei contudo

Que o louvor sai às vezes acabado;

Nem me falta na vida honesto estudo

Com longa experiência misturado;

N em engenho, que aqui vereis presente,

Cousas que juntas se acham raramente.

É esta uma das dimensões de Camões muitas vezes esquecida em muitos comentários sobre a sua obra: a consciência e a proclamação de três qualidades de que ele tem consciência e que apresenta como modelo para o rei e para todos, às vezes esquecidas em mitos comentários: o engenho, o estudo e a experiência.