Da história da música para a liturgia: Corpus Christi

Foto: João Lopes Cardoso

Por Bruno Ferreira*

O Corpus Christi (“Corpo de Cristo”) ou Solenidade do Corpo e Sangue de Nosso Senhor Cristo, anteriormente chamado Corpus Domini (“Corpo do Senhor”), é uma solenidade da Igreja Católica destinada a celebrar a Eucaristia. O seu principal objetivo é proclamar e aumentar a fé dos crentes na presença real de Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, adorando-O publicamente em adoração (latria) na quinta-feira a seguir à Solenidade da Santíssima Trindade, que por sua vez tem lugar no domingo a seguir ao Pentecostes (ou seja, o Corpus Christi é celebrado 60 dias depois do Domingo de Páscoa). Especificamente, Corpus Christi é a quinta-feira que se segue ao nono domingo após a primeira lua cheia da primavera no hemisfério norte. Em alguns países, esta festa foi transferida para o domingo seguinte para se adaptar ao calendário de trabalho.

Charpentier: O salutares hostia, H.262

 

Latim:

 

O salutaris Hostia,

Quae caeli pandis ostium:

Bella premunt hostilia,

Da robur, fer auxilium.

Uni trinoque Domino

Sit sempiterna gloria,

Qui vitam sine termino

Nobis donet En patria.

Amen.

 

 

 

 

Tradução portuguesa:

 

  Ó Hóstia Santíssima

    que abris as portas do céu;

    nos ataques do inimigo,

    dai-nos força, concedei-nos ajuda.

    Ao Senhor, Uno e Trino

    seja dada a glória eterna

    e dai-nos a vida eterna,

    na pátria celeste.

    Ámen.

O hino O salutaris hostia, tirado da penúltima estrofe de Verbum supernum prodiens, o hino de São Tomás de Aquino para as Laudes do Corpus Domini, foi musicado por muitos grandes compositores. São Tomás foi um dos maiores teólogos da história da Igreja, mas também um místico e poeta de grande estatura, com uma particular e intensa devoção eucarística que o levou a compor muitas das mais belas prosas para a liturgia. Nas suas letras, a profundidade do grande teólogo combina-se com o encanto dos fiéis e a simplicidade amorosa do santo. Deste modo propomos o seu O Salutaris hostia (https://www.youtube.com/watch?v=55wAGFJ-9Xg) – para para soprano, dois oboés e contínuo – na esplêndida versão de Marc-Antoine Charpentier (1643-1704), músico barroco francês conhecido pela sua obra-prima sacra, o Te Deum.

Charpentier cria uma peça musical simples e breve, na qual a voz do soprano é enquadrada com graça e elegância pelos instrumentos musicais. A expressividade típica da música barroca está certamente presente, mas atenuada pela compostura e sobriedade do estilo musical; a atmosfera de alegria serena transmite um belo sentimento de adoração reverente. A mesma “humanidade” calorosa desta peça parece traduzir em música um dos principais conceitos da veneração do Santíssimo Sacramento: o Deus que se torna tão próximo do ser humano que se faz homem e se faz pão. Há, de facto, um ambiente confidencial e sereno nesta música, a que os arabescos dos sopros conferem uma aura de alegria e ornamentação, mas em que a proeminência da voz humana feminina cria um espaço de contemplação absorta e feliz, bem adequado à celebração hodierna.

É particularmente significativa a adoção deste estilo por um compositor que viveu num ambiente histórico, político e artístico que certamente não brilhava nem pelo intimismo nem pela sobriedade, mas, precisamente por isso, as escolhas composicionais de Charpentier parecem verdadeiramente interessantes, pois oferecem uma perspetiva do Mistério do Corpo e Sangue de Cristo tanto mais verdadeira e intensa quanto menos descontada no seu contexto.

*sacerdote e aluno de Composição no Pontifício Instituto de Musica Sacra (PIMS), em Roma