Da história da música para a liturgia: Solenidade de Pentecostes

Foto: João Lopes Cardoso

Por Bruno Ferreira*

Mozart: Veni, Sancte Spiritus, KV47

 

Latim:

 

Veni, Sancte Spiritus:

Reple tuorum corda fidelium:

et tui amoris in eis ignem accende

qui per diversitatem

linguarum cunctarum

gentes in unitate fidei congregasti.

Alleluia.

 

 

 

 

Tradução portuguesa:

 

Vem, Espírito Santo:

enche os corações dos teus fiéis

e acende neles o fogo do vosso amor,

Vós que na diversidade das línguas

reunistes as nações

na unidade da fé.

Aleluia.

É precisamente com um Veni, Sancte Spiritus de autor (é o texto do Gradual da Missa da Festa e precede a Sequência) que iniciamos esta viagem musical dedicada ao Pentecostes, recorrendo a uma peça composta por Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) quando tinha apenas oito (!) anos de idade, o Veni, Sancte Spiritus KV47. (https://www.youtube.com/watch?v=KY8fDjBN1LU).

Apesar das suas reduzidas dimensões, trata-se de uma pequena e precoce obra-prima: embora, naturalmente, comparando esta peça com outras que saíram da pena do mestre de Salzburgo em anos posteriores, se possa detetar alguma pequena ingenuidade, é inegável que seria difícil imaginar, na altura da sua criação, que uma peça tão bela e tão bem conseguida pudesse ter saído da imaginação de uma criança que estaria hoje a frequentar a terceira classe.

Impressionante, por exemplo, é a fluência com que Mozart (talvez, admitamos, do seu pai Leopold) lida com as complexidades do contraponto; ainda mais notável – e, provavelmente, inteiramente de Wolfgang – é a imaginação no uso da forma rítmica da hemíola (uma mudança de acentos que transforma dois compassos de três tempos em três compassos de dois tempos, nas palavras “veni, Sancte Spiritus“) e algumas modulações e resoluções excecionais que são muito interessantes do ponto de vista harmónico.

O jovem Mozart mostra também uma total confiança nas suas escolhas orquestrais, explorando habilmente a sonoridade dos sopros e a agilidade das cordas (os violinos são muitas vezes chamados a representar, com as suas rápidas semicolcheias, a chama do Espírito), bem como as características da voz humana na sua força e delicadeza. Mesmo o tratamento da estrutura musical, com a alternância e sucessão das várias secções, e com a criação de uma atmosfera de felicidade arrebatadora (uma felicidade que talvez só uma criança de oito anos possa ainda conhecer perfeitamente), demonstra uma maturidade artística e musical que muitos adultos ficariam surpreendidos em possuir.

A unidade dos fiéis, que o Espírito realiza com base na sua variedade, é representada na união das várias, após um breve episódio imitativo, sobre a palavra “congregasti“, precedida por uma volata dos instrumentos que parece representar verdadeiramente o vento do Espírito que leva as várias famílias humanas à unidade; muito belas são também as escolhas de quebrar, por vezes, as frases do texto verbal, justapondo-as de forma significativa em novas combinações sugeridas pela própria música. A peça conclui-se com um rápido “Aleluia” em tempo Presto e em movimento binário; embora talvez o Mozart mais maduro, com o seu apurado sentido de cena, pudesse ter encurtado esta secção, não deixa de ser delicioso ver o entusiasmo do Mozart criança pela oportunidade de exprimir em música, em grande parte da sua peça, a alegria que advém do louvor a Deus.

Perante um pequeno milagre como este, é bom relacionar o dom da criatividade musical com o da “inspiração“; sublinhar, isto é, que toda a criação musical se deve, sem dúvida, ao empenho e ao esforço do músico, à sua aplicação e pesquisa constantes, mas é também, talvez antes de mais, um dom gratuito, um dom de amor, um “talento” generosamente oferecido a Deus, no qual encontramos uma manifestação da beleza e da variedade dos carismas infundidos pelo Espírito.

*sacerdote e aluno de Composição no Pontifício Instituto de Musica Sacra (PIMS), em Roma