Cinema visto pela Teologia (111): “O Rapto”

Uma leitura do filme “O Rapto

Por Alexandre Freire Duarte

O tecido da história da Igreja é feito de grandes atos de amor, mas também está rasgado por situações como as relatadas nesta obra. Fomos o que fomos. Somos o que somos. Bellocchio não nos perdoa. Nem quer. Revoltado, enérgico, iconoclasta e provocador, ele dirige um filme de época sólido, interessante e basculante para quem tem coração. Todavia, esta obra ao ser demasiado operática, melodramática e em que o ideário visual alisa a trama, a sua própria pseudo-irresolução volta-se contra ela mesma.

Os atores são impecáveis, mas restritos a figuras estereotipadas que desbotam parte da riqueza que logram, com facilidade, trazer para a obra. Mas o que trazem já é notável: desde as opacidades políticas, psicológicas e religiosas à dor que transmite a luta de Alesi (um novo Abraão?) e Ronchi (tornada, a seu tempo, uma quase “Pietà” sem senso) contra Gifuni (titânico e cintilante de frieza) e Pierobon (cego pelo que o rodeia e a cair por dentro). Por fim, juntam-se com perícia: a fotografia expansiva e majestosa até nos detalhes e nos jogos de contraluz; a música seleta; a filmagem e a edição elegantes.

«Forcem-nos a entrar» [na Igreja Católica], disse um dia Agostinho de Hipona pegando numas palavras de uma parábola de Jesus. Mesmo admitindo-lhe as melhores das intenções, esquecia-se esse grande bispo que numa religião verdadeira não há coação. Se houver, por mais que se acabe por aderir a tal crença, as feridas espirituais provocadas por tal situação invasiva impedirão uma existência baseada na vida. Uma misteriosa vida a ser lavrada na Esperança, para poder ser cuidada numa incarnação amorosa na mesma dinâmica criativa de Deus que nunca cessou os Seus labores de amor.

Se a religião não observar o seguinte “prumo de ouro” – amar é proteger os outros do nosso egoísmo –, acabará por tornar-se numa edificação arbitrária, feita de palavras e gestos que geram imagens artificiais facilmente rejeitadas por dentro e satirizadas por fora. Mas se o realizar, então, dará a quem o seguir naquela vida (que é sempre uma viagem íntima e não algo exterior) um cotejo com a Verdade que é sobretudo Alguém. Alguém que não possuímos, mas que vivemos, mesmo quando lanceta os confins dos nossos espíritos para nos libertar do que de retrógrado e tribal aí se poderá ter alojado.

Face a “Rapto – e à nossa presente deriva identitária com as novas (pois já antiquadas) religiões estranhas e alheias ao humano – é de anuirmos à indeclinável urgência de um feito tão inexorável quão invisível: o do vivermos no respeito delicado do ser humano. Não é para este, a sua liberdade e dignidade que Jesus nos remete? Não é este que nos é dado por Ele como a Sua herança e nossa maior alegria? Se é, então, não coajamos ninguém: forçar é vergar e isto é contra tudo o que Jesus anseia de e para nós.

Talvez devesse ter dúvida. Se calhar receio não a ter. Mas não será a vida humana (e o seu valor penetrado pelo fermento do Espírito) o mais importante depósito que a Igreja deve conservar? E poder-se-á conservar algo vivo senão capacitando-o a viver melhor? Eis de novo a já aludida vida. Não a vida que se alinha pela “ausência do desejo de ferir”, mas pelo perdão que pode mudar a quem nos fere. Mas com discrição: que os demais vejam os diversos “famintos” a quem “alimentamos”, mas não a nós a fazê-lo.

(Itália; 2013; dirigido por Marco Bellocchio; com Fabrizio Gifuni, Paolo Pierobon, Fausto Russo Alesi, Barbara Ronchi, Enea Sala, Leonardo Maltese)