Uma leitura do filme “O Mal não está Aqui”
Por Alexandre Freire Duarte
Regresso a filmes japoneses com “O Mal não está Aqui”. Este é uma tranquila, despretensiosa, meditativamente opaca e um pouco nuançada fábula ecológica, em que diversas pistas alegóricas e razões simbólicas nos vão sendo imaculadamente dadas a conhecer ao longo do tempo, para nos permitirem absorver o choque do seu ousado e inesperado clímax (mas aparentemente alheio à tensão anterior da obra), que obriga a reconsiderar todos os pensamentos anteriores. Dito isto, e tendo mais texturas hipnóticas e emocionais do que ação, muito não se captará se se ignorar a mitologia nipónica.
As personagens deste filme são poucas e pouco se realçam individualmente, mas em conjunto permitem explorar as angústias e os atritos entre figuras diversas e distintamente motivadas nos seus interessantes perfis. As câmaras são inconspícuas, fluídas e soltas; a fotografia é delicada e rugosa, adaptando-se ao cenário rural-florestal geral; e os cenários são atrativos, mas é a música – que em momentos parece guiar a história, em vez de ser ao revés – é imensamente evocativa no apontar das harmonias estratificadas e ruturas prognósticas, mostrando que os sentimentos podem mentir.
Será mesmo que o “mal” não está “aqui” (seja este “aqui” onde quer que o queiramos imaginar)? Tudo geme de dores de parto enquanto não é libertado do egoísmo com que o contaminamos. Eis, então e inclusive entre pessoas a quem podemos chamar de genuinamente cristãs, as discórdias, a miséria, o sofrimento e o olhar para um abismo que, por mais que saibamos ser de amor, não deixa de ser um abismo. Sim: o mal não chega ao mais fundo de nós, mas quantas vezes somos transparentes para o mostrarmos?
A árvore, a flor e o fruto são a água sem serem verdadeiramente essa água. E essa água é semente da Água Viva que faz de cada instante deste filme (e da nossa vida) uma visão tão do nosso presente, como da certeza da morte onde “ouviremos”: “Eu, o teu Amor, qui-lo, e tu?” Não partilho da aflição climática de tantos dos nossos coevos, mas não posso negar que “O Mal não está Aqui” acerta quando me fez pensar que toda a Criação está suspensa, com o peso infinito da ternura, de cada um dos batimentos dos nossos corações. E saibamos que só o que vier a ser textura do nosso amor é eternizável.
Há quem queira uma Encíclica Papal a dizer que os animais e os vegetais também irão ser ressuscitados. Mas estaremos dispostos a assumir que o se ser bom e alegre no amor é já ajudar os demais a serem-no? Até onde investimos a nossa vida na comunhão com a Criação? É que há Criação e “Criação”; há ir e não voltar quando a idolatrizamos. Podemos mudar de ideias, mas geralmente estamos apenas a concordar com o que, dito pelos demais, está em sintonia connosco. Isto é amar-se num astuto egoísmo. Não o sentis? Amemo-nos uns aos outros e não a ideais abstratos – mas sem discutirmos para termos razão, antes evitando sempre o amar por dever, antes fazendo o devido por amor.
O empenho falso só se mostra mais falso a cada passo que damos; o dizermos querer mudar de vida só se mostra um som vazio quando dito após o cansaço evitado. Como querer amar sem empenho? E como só desejar um fogo que de Fogo nada tem, sendo incapaz de nos elevar? Sim: é belo cooperar, mas sem amor nada se sustém.
(Japão; 2023; dirigido por Ryûsuke Hamaguchi; com Hitoshi Omika, Ryô Nishikawa, Ryûji Kosaka e Ayaka Shibutani)