Da história da música para a liturgia: Domingo VI da Páscoa

Foto: João Lopes Cardoso

Por Bruno Ferreira*

Como era muito usual instituir uma rogação no sexto domingo de Páscoa, o dia festivo correspondente era frequentemente conhecido como domingo do “Rogate”; caso contrário, como era costume, era referido como o incipit do Introito correspondente, que era “Vocem jucunditatis”. Na continuação da leitura do grande discurso sacerdotal de Jesus aos discípulos, relatado por João depois da Última Ceia, o lecionário da festa prescrevia para este dia o Evangelho de João (16,23-30), no qual Jesus fala aos discípulos sobre o Pai.

Tallis: If ye love me

 

Inglês:

 

If ye love me, keep my commandments.
And I will pray the Father,
and he shall give you another comforter,
that he may ‘bide with you forever;
E’en the sp’rit of truth.

 

[João 14, 15-17]

 

 

 

Tradução portuguesa:

 

Se me amais, guardai os meus mandamentos.

E eu rogarei ao Pai,

e ele dar-vos-á outro consolador,

para que fique convosco para sempre;

E o espírito da verdade.

 

 

Precisamente inspirado pela promessa deste Evangelho – que, também do ponto de vista literário, é um dos vértices da poesia universal – Thomas Tallis (1505-1585) compôs o seu “If ye love me” (https://www.youtube.com/watch?v=1zGOsN0pAw0) sobre um outro fragmento do Evangelho de João, que, no entanto, antecipa os seus temas e o seu tom. Tallis, que, tal como Byrd, individualizou o credo católico no difícil contexto da Inglaterra elisabetana, em que o regresso ao protestantismo após o reinado de Maria, a Católica, assumiu contornos de violenta perseguição, foi também compositor de música sacra para o culto anglicano.

Os critérios estéticos que regeram a produção sacra no período inicial do anglicanismo inspiraram-se numa notável sobriedade, por vezes quase calvinista, e, em particular, em parâmetros de inteligibilidade sem dúvida mais rigorosos e vinculativos do que os alguma vez impostos pelo Concílio de Trento.

If ye love me” é um motete ou hino para coro a cappella a quatro vozes (SATB), publicado pela primeira vez em 1565 e faz parte do repertório da música da igreja anglicana. Sendo um dos primeiros motetes em língua inglesa, é frequentemente executado hoje em dia, tendo sido cantado em ocasiões especiais, incluindo uma visita papal e um casamento real.

Naturalmente, quanto mais o compositor estiver vinculado à palavra “falada” e se propuser o objetivo de a tornar percetível, menos livre será para utilizar polifonias intrincadas ou melismas prolongados, que sem dúvida aumentam o encanto da música e também o seu encanto simbólico, mas que também certamente dificultam a compreensão do texto.

A provar que todas as regras têm as suas excepções está precisamente este extraordinário motete de Tallis, que respeita escrupulosamente as mais estritas e ascéticas indicações composicionais (uma sílaba por nota, homofonia quase total, mas com alguma elaboração e imitação; escrito em forma de ABB, com a segunda secção repetida), mas que atinge alturas de beleza provavelmente só igualadas pelo Ave Verum de Mozart.

Pode dizer-se que é verdadeiramente uma maravilha do génio e da inspiração do músico ter conseguido criar uma peça tão absolutamente tocante, tão intensamente mística, tão absolutamente bela, a partir de um material musical extremamente simples. As palavras do discurso de Jesus – que, aliás, são, como se costuma dizer, tão belas e importantes por si mesmas que exigem tal apreciação – sobressaem pelo seu incomensurável valor espiritual e estão revestidas de uma doçura pungente, que permite realmente a quem nunca ouviu a Vox Christi com os seus próprios ouvidos físicos ter uma ideia de como poderia ser fascinante ouvi-la, tal como aconteceu aos discípulos quando estas palavras foram proferidas pela primeira vez.

*sacerdote e aluno de Composição no Pontifício Instituto de Musica Sacra (PIMS), em Roma