Liberdade, Democracia, Desenvolvimento

Por M. Correia Fernandes

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo

Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andersen, 1974

Poderemos sentir-nos regozijados com a celebração dos 50 anos do 25 de abril de 1974: a participação da população em muitas localidades tornou-se quase uma réplica do primeiro de maio de 1974, em que o povo, ainda sem conflitos protagonizados pela diversidade das forças políticas, se expressou livremente em ambiente de fraternidade liberta. O mesmo poderá ter acontecido agora nesta celebração dos 50 anos: parecia terem-se desvanecido os conflitos e as diatribes políticas para se encontrar uma comum alegria, inicial e limpa.

Sabemos que os conflitos voltarão a assumir preponderância e que voltaremos às diatribes e aos dramas da governação e dos interesses laborais e salariais que voltarão a afirmar-se. Porém, esta vivência popular das celebrações do 25 de abril deve ser motivo para uma reflexão alargada. Há valores que congregam.

São seguramente acertadas as palavras de D. Américo Aguiar, ao fazer notar que, de todo o ideal de 1974, falta cumprir a fraternidade. Do ideal de descolonizar, democratizar, desenvolver, não constava a palavra “fraternidade”, mas ela vinha na canção de José Afonso que serviu de senha ao movimento: “terra da fraternidade”, bem como as suas companheiras em cada rosto igualdade, e o povo é quem mais ordena, isto é, a democracia. Ouvimos cantar este tema em vários locais, com arranjos orquestrais e com canto multitudinário.

Mas este cumprir a fraternidade tem andado esquecido, como também o tema da paz. Ouvimos lançar projetos de oitenta mil milhões de euros para manter a guerra, e não encontramos esforço semelhante para fomentar a paz e o desenvolvimento, ou ao menos para garantir alimento às vítimas da guerra apoiada com tanta riqueza.

Isto leva-nos a pensar em conceitos e projetos humanos que esta festiva celebração da sensação de liberdade de que usufruem os cidadãos, para os quais projetos a nossa sociedade deveria encontrar formulação e prática. Importa lembrar que I. Kant (1724-1804) recorda que o direito exige deveres de virtude, para consigo mesmo e para com os outros: todo ser humano tem o direito de ser tratado de forma igual e de forma fraterna; porém tais direitos humanos somente se consolidam quando a solidariedade e o respeito à dignidade forem vistos como uma obrigação moral.

Seja o primeiro ideal a construção da justiça social, considerada nos seus componentes mais essenciais: acesso de todos aos direitos e oportunidades, para além da origem, cor, género ou condição económica, isto é, numa distribuição equitativa dos frutos da riqueza coletiva, dos rendimentos do trabalho e no acesso à educação, à saúde, ao conhecimento, com critérios de igualdade e mérito. Este sentido da justiça social tem que ser obtido por políticas públicas em ordem à redução das desigualdades, e fomentadoras de atitudes e práticas sociais bem orientadas.

Outra dimensão que importa desenvolver é a edificação do sentido da paz social, fundada no sentido de alcançar o bem comum em espírito de diálogo e entendimento.

Outra dimensão essencial e por vezes esquecida é a da promoção e consolidação dos valores humanos, entre os quais estão os direitos, mas também os deveres e responsabilidades sociais dos indivíduos e das coletividades. Parece que a linguagem e os poderes públicos não têm vindo a valorizar estas dimensões. Segundo o ensinamento dos textos pontifícios, a justiça social deve assentar em três pilares: “dignidade humana, solidariedade e subsidiariedade”. O respeito pela dignidade humana é inerente à própria pessoa como dom de Deus; a solidariedade assenta na igualdade e interdependência de todos, conduzindo, como realça o Papa, no dever recíproco do cuidar; a e a subsidiariedade aponta para o aproveitamento e colaboração de todos nas tarefas coletivas.

Importa lembrar também que temas fraturantes na sociedade de hoje, como o aborto, a eutanásia, a morte assistida, a moral nos campos da sexualidade, o apoio à maternidade devem entrar neste quadro do equilíbrio e da dignidade humana. O que muitas vezes não acontece.

Emergimos da noite e do silêncio. Importa agora habitar a substância do tempo, a qual é a de hoje e de há cinquenta anos: este tempo deve ser um tempo novo, tempo da terra da fraternidade, em que o povo ordena o respeito, o bem comum, e usa a liberdade para edificar uma sociedade mais justa.

Estes devem ser os grandes pilares da governação! O grande pacto governativo para o futuro!