A Igreja e os cristãos que prepararam o 25 de Abril de 1974

Por Jorge Teixeira da Cunha

Qual foi o contributo da Igreja para o 25 de Abril? Esta pergunta tem diversos níveis de resposta. Vamos tentar esclarecer este assunto.

Pelo seu próprio existir como comunidade da vida em Cisto, a Igreja é uma denúncia contínua das imoralidades da organização política. Foi assim com o regime do Estado Novo. Quando um regime se perpetua não substituindo pacificamente os seus titulares, limita a liberdade de expressão, penaliza delitos de opinião, institui uma polícia que tortura cidadãos por estes motivos, atenta contra a a liberdade religiosa, proíbe a greve e os sindicatos, esse regime está continuamente debaixo do olhar da moral cristã que o denuncia. Reparemos que qualquer forma de organização política que que incorra nestas imperfeições está sob crítica da doutrina cristã. O chamado Estado Novo incorria ainda em outras formas de colisão com a moral cristã quando decidiu responder violentamente à violenta, mas legítima, reivindicação de autonomia política dos povos africanos. Uma guerra, mesmo que seja uma guerra defensiva, não é fácil de justificar à luz da vida em Cristo. Por isso, a Igreja preparou a superação do Estado Novo, não temos nenhuma dúvida disso. Reparemos que a existência da comunidade cristã, como espaço de abertura ao Reino de Deus é sempre uma crítica aos regimes políticos, mesmo às inúmeras imperfeições dos nossos regimes ditos democráticos. Não fiquem perplexos com este princípio que também se volta contra formas concretas de organização da Igreja que ocorreram na história passada e presente. A Igreja é invisível e visível, santa e pecadora, ao mesmo tempo.

Isto não tudo o que há a dizer sobre a Igreja o 25 de Abril. Se descemos mais ao concreto dessas cinco décadas da história do nosso país, podemos ver que houve diversas atitudes possíveis que moveram os cristãos nossos antepassados. Houve cristãos que viveram sem grande conflito ou até com apoio declarado dentro da situação, como então se dizia. Talvez esse tenha sido o caso da maioria dos bispos que, mesmo com conflitos interiores acharam que, para manter a paz do rebanho, assumiram o compromisso do silêncio. Houve outros que tiveram a ousadia de viver a sua missão de forma crítica. Entre esse conta-se D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, que pagou com o exílio a sua devida missão episcopal. Outros houve que discordaram, mas sem chegar a um conflito aberto, seja no Continente, seja nas terras de administração portuguesa em África. Neste grupo, poderemos colocar D. Manuel Falcão, D. António Cardos Cunha, D. Moisés Alves de Pinho, D. Sebastião Soares de Resende e outros cuja biografia não está feita ainda.

A superação do Estado Novo foi também preparada por um grande número de sacerdotes e de fiéis leigos que sofreram o seu testemunho de forma valente. Entre esses, é justo lembrar os inúmeros militantes da Acção Católica, os que integraram lutas sindicais, os que foram oposicionistas na universidade em nome da sua fé, com grande dano das suas carreiras académicas. Certamente houve militares que se opuseram à guerra colonial em nome da fé, juízes que estiveram do lado da justiça aos injustamente acusados. Nunca saberemos o nome de todos as pessoas que, com mais ou menos visibilidade, viveram a bem-aventurança que desperta a oposição do mundo. Esta é a hora da nossa gratidão para a multidão dos que incarnaram o seguimento de Jesus nas condições adversas deste regime.

A instituição política justa nunca se consegue neste mundo. Por isso, os cristãos estão sempre em casa e sentem-se sempre estranhos, seja qual for o regime político. Ontem, tiveram o mérito de lutar contra os aspetos iníquos do Estado Novo e pela superação do regime. Mas a mudança do regime não é tudo. Alguns tiveram de lutar, no dia seguinte, contra os desmandos da revolução, como os processos arbitrários de saneamento e, em todos os tempos, têm de lutar por mais e melhor democracia institucional, pela sociedade fraterna, pela cultura da hospitalidade ao outro, pela justiça laboral que estamos longe de conseguir, mesmo depois do 25 de Abril.