Por Bruno Ferreira*
Para os cristãos, a Páscoa é a festa por excelência: teologicamente, é a fonte de onde brotam todas as outras festas e a própria fé cristã; liturgicamente, é o cerne em torno do qual gira todo o ano litúrgico; vivencialmente, é o momento em que mais claramente se antecipa a alegria de uma vida sem fim e se sente o desejo de exprimir este sentimento nos modos mais belos.
Por estas razões, o dia de Páscoa e seus domingos, e os seus muitos e esplêndidos rituais deram origem a um número infinito de composições musicais, muitas das quais encorajadas pelo seu esplendor pelo facto de a Páscoa marcar também o fim da Quaresma e de todas as limitações musicais que tinham sido associadas ao período penitencial.
Como sempre, na impossibilidade de resumir, ainda que brevemente, a copiosa colheita de peças compostas para a Páscoa, limitar-nos-emos a alguns exemplos de alguns dos mais importantes compositores da história da música. Nesta semana propomos a escuta do Regina Coeli de Johannes Brahms.
Brahms: Regina Coeli, op. 37.
Latim:
Regina coeli, laetare, alleluia quia quem meruisti portare, alleleuia resurrexit, sicut dixit, alleluia: ora pro nobis Deum, alleluia. Gaude et laetare, Virgo Maria, alleluia quia surrexit Dominus vere, alleluia.
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Tradução portuguesa:
Rainha do Ceus, alegrai-vos, aleluia! Porque aquele que mereceste trazer em vosso seio, aleluia! Ressuscitou como disse, aleluia. Alegrai-vos e exultai, ó Virgem Maria, aleluia! Porque o Senhor ressuscitou verdadeiramente, aleluia! |
Johannes Brahms (1833-1897) é considerado uma das figuras mais importantes do Romantismo alemão, comumente associado a uma expressividade mais livre de regras e supostos constrangimentos do que em épocas anteriores. No entanto, não se pode certamente dizer que a sua música seja feita de “génio e feitiçaria”; pelo contrário, a sua admiração pela mestria composicional dos grandes do passado levou-o a procurar imitá-los, mesmo na adoção de estilos de escrita particularmente complexos. E se foi precisamente a polifonia flamenga de Josquin e dos seus antecessores que constituiu um paradigma de dificuldade arquitetónica, Brahms parece querer desafiar a sua mestria neste Regina Coeli (https://www.youtube.com/watch?v=CyosL4OCjrE) composto para um coro feminino de Hamburgo, um cânonedifícil para duas vozes solistas e coro.
A estrutura “pergunta e resposta” em que se alternam solistas e coro parece, aliás, aludir ao estilo de “cori spezzati” (coro quebrado) típico da tradição veneziana estabelecida pelos Gabrieli; e, apesar da árdua dificuldade da escrita, Brahms consegue criar uma peça de grande leveza, luminosidade e alegria, que retrata admiravelmente a elegância da Virgem, a felicidade da Páscoa e a graça da feminilidade. As amplas vocalizações aleluiáticas conferem vivacidade e fluência à escrita, enquanto os “aleluias” rítmicos e animados são uma alusão (neste caso, provavelmente deliberada) à famosa peça haendeliana do Messias.
O texto é o texto litúrgico da Antífona Mariana do Tempo Pascal, e esta escolha é também digna de nota: juntamente com a Ave Maria, estas são as duas únicas peças em latim compostas por Brahms, um compositor fascinado por temas religiosos mas também pela sua profunda fé luterana.
Parece-nos, pois, belo que uma peça que parece conciliar aspectos aparentemente contrastantes de diferentes confissões cristãs, bem como estilos musicais, possa tornar-se um símbolo musical da reconciliação universal oferecida e concedida por Cristo ressuscitado na sua Páscoa.
*sacerdote e aluno de Composição no Pontifício Instituto de Musica Sacra (PIMS), em Roma