Por M. Correia Fernandes
Como é natural e tinha que ser, a Voz Portucalense fez devido eco dos acontecimentos e da busca de sentido do movimento que eclodiu em 25 de abril de 1974. A edição de cada semana era naturalmente preparada com uma antecedência exigida pelas circunstâncias da sua publicação naqueles dias. Levava a data de 27 de abril de 1974 esse que era o n.º 17 de 27 de abril de 1974, no quinto ano de publicação do semanário. Esse número, que a redação considerava “número especial” era em “grande parte dedicado à Virgem Maria, Mãe de Deus e da Igreja”, com a publicação integral da exortação apostólica do Papa Paulo VI. A primeira página estava intitulada “Nossa Senhora do século XX”, e referia que o texto integral obrigava “este número a ser um pouco diferente dos outros”, já que o documento ocupava integralmente 6 páginas, que nesse número eram 16 (habitualmente nessa altura publicavam-se 12 páginas por edição). Mas mantinham-se os espaços habituais, como o editorial, intitulado “Damião de Góis, o europeu”, do diretor M. Álvaro V. de Madureira, as reflexões em “Notas da semana”, de Pacheco de Andrade, as notícias do “Nacional” e “Internacional”, os “Reflexos da TV” da Mário Castrim e o apontamento de cinema, sobre “A Máscara”, de Bergman (por M. Correia Fernandes), uma reflexão sobre o trabalho e sobre o papel dos livros para crianças. Apenas uma nota, em corpo maior, assinalava:
“Movimento das Forças Armadas. À hora em que fechamos este número de VP, 5.ª feira de tarde, dia 25 p.p., ainda não conhecíamos claramente os factos em causa no movimento político que, nesse dia se gerou, para podermos informar o nosso público, de acordo com a projecção que os acontecimentos, naturalmente, merecem”.
O número seguinte datado de 4 de Maio de 1974, abria com este título: “25 de abril – Esperança de dias diferentes”, com a informação “O Movimento das Forças Armadas libertaram-nos do medo e do apolitismo que o fascismo gerava e afirmaram-nos que não há razões para perder a esperança. A população aderiu em massa, retribuindo com flores o cavalheirismo dos militares e o silêncio das armas que felizmente não abriram fogo”.
O Editorial desse número, já posterior às grandiosas manifestações do 1.º de maio, assinalava, sob o título “Do 28 de Maio ao 25 de Abril”, recorrendo à imagem bíblica da estátua com os pés de barro:
“A metálica ditadura salazarista-caetanista tinnha os pés de barro. Tinha as armas, mas não tinha as almas. E as armas sozinhas de nada servem. A alma do povo estava contra, a alma do exército também. Sem perda de sangue, sem alarido, sem perturbação da vida quotidiana, em poucas horas desabou um regime construído ao longo de mais de quarenta anos. Uma das melhores a coisas que uma ditadura pode fazer é morrer a tempo”.
E referia ainda este dado simbólico: “Tanto quanto sabemos, no momento da derrocada, o governo cessante, na pessoa do Prof. Marcelo Caetano, tomou também uma atitude de correcção e dignidade”, e enviava saudações aos militares, e “votos de bom sucesso nos seus empreendimentos, se todos forem para bem de Portugal e da Humanidade”.
A perspectiva que a VP propunha era depois apresentada: “Democracia, possibilidade de construção efectiva do País renovado”. Apresentava também um relato dos acontecimentos, o Programa da J.N.S. (Junta de Salvação Nacional). Inseria ainda, com início na primeira página, uma mensagem assinada pelos Bispos António [Ferreira Gomes], e Domingos [de Pinho Brandão], então Bispo Auxiliar, sob o título “A Voz da nossa Igreja”, que concluía:
“A hora que vivemos é sem dúvida das mais altas, mas também certamente mais grave da nossa história. Como cristãos, portugueses e portucalenses, sejamos dignos desta hora!”.
Esse número continha ainda o texto “Um imperativo de consciência”, assinado pelo Bispo de Nampula e por todos os Combonianos da Diocese de Nampula (34 padres, 19 irmãos e 41 irmãs). O Bispo de Quelimane, Francisco Nunes Teixeira, escrevia um texto, certamente preparado antes, em apoio aos missionários combonianos e ao Bispo de Nampula Manuel Vieira Pinto, que haviam sido obrigados a abandonar o território de Moçambique, deixando a Diocese “desprovida de clero”, pedindo orações pelos bispos, sacerdotes e igrejas locais de Tete, Beira e Nampula.
A última página continha ainda, sob a coordenação de Rui Osório, chefe de redação, “Uma reflexão sobre o 25 de abril”, em que se apelava à consciência política, à atenção aos trabalhadores rurais e operários, e em que se afirmava: “A Igreja deverá reconhecer sempre que as instituições de acção temporal pertencem à esfera especificada sociedade civil, ainda quando criadas e dirigidas por cristãos”.
Uma outra reflexão, assinada por A. Roma Torres lembrava programaticamente o título Portugal e o futuro, procurando discernir “Porquê o 25 de abril”, quais foram os seus actores, e quais os projetos que podem ajudar a construir o futuro, valorizando as experiências que valem pelo seu próprio momento e “justificam a Utopia”.
Este número inseria ainda e seguinte nota simbólica:
“De 3 de janeiro de 1970 a 27 de abril de 1974, publicámos 225 números de VP sujeitos, sem excepção, aos espartilhos, arbitrariedades e discriminações da Censura – Exame Prévio.
Este é o primeiro número sem censura”.
Esta última afirmação poderia levar-nos ao percurso dos 225 números anteriores, e como neles se exerceu a ação da censura. Mas sobretudo, verificar o universo dos temas de valor humanístico, teológico e cultural que preenchiam o conteúdo do semanário, que lhe valia também essa atenção privilegiada da verificação censória. Os grandes problemas sociais, os grandes temas dos movimentos eclesiais e cívicos no país e no mundo, sempre foram objeto de estudo, reflexão e divulgação, desde os documentos do Magistério eclesial até às iniciativas de muitas comunidades cristãs, incluindo os domínios da arte, da cultura e das iniciativas populares.
Entre alguns temas desenvolvidos nesse ano de 1974, chamamos a atenção para os seguintes:
A paz é possível (que falava de patriotismo cristão, qualidade de vida, defesa contra o pessimismo) – na mensagem da paz do Bispo do Porto para esse ano de 1974; a emigração e promoção humana; o Conselho Ecuménico das Igrejas; Um plano de fomento social; Sociedade moderna e população; a razão e o fanatismo; dois terços dos homens passam fome; problemas conjugais e de natalidade; novos caminhos para a Europa; a figura de Cristo na sociedade; a Igreja na Assembleia Nacional; a presença do Opus Dei entre nós; a Defesa do consumidor; o papel dos catequistas; a valorização profissional dos professores; a situação das empregadas domésticas; o sentido da dor; “governar não é estorvar”; população portuguesa e saúde; a verdadeira Europa; realidades e problemas do baixo-Douro, a situação da mulher operária (publicado em 20 de abril de 1974).
Acrescem os habituais “Reflexos da TV” de Mário Castrim, e as semanais críticas dos filmes mais salientes em exibição.
Seria também interessante verificar a evolução da temática do semanário nos tempos seguintes.
Voz Portucalense era assim um semanário onde o teológico, o ético, o social e o cultural viviam lado a lado. Como hoje!