Da descida da cruz de Domingos Sequeira ao Paulus de Mendelssohn

Por M. Correia Fernandes

1 Fomos confrontados em tempos recentes pela notícia da disponibilização para venda de uma pintura de Domingos Sequeira (Lisboa 1768-Roma 1837), pintor do período neoclássico a caminhar para o período romântico. Tendo trabalhado em Lisboa, onde pintou motivos relacionados com a história portuguesa, foi em Roma, na fase final da sua vida de 67 anos, que pintou especialmente  motivos de inspiração bíblica, como a “Descida da cruz”, a “Adoração dos Magos”, a “Ascensão” e o “Juízo final”. A obra “Descida da cruz” data de 1827, e foi a primeira das que fez em Roma.

O motivo bíblico da descida da cruz foi objeto de muitos quadros elaborados por pintores célebres, o que se compreende por ser um acontecimento central da vida de Cristo. São conhecidas obras de nomes tão ilustres como Caravaggio (1571-1610), Rubens (1577, 1640), e mesmo um outro autor anónimo português que também será desses séculos XVI ou XVII, quadro existente no Museu de S. Roque em Lisboa. A composição comum desses quadros apresenta um número reduzido de personagens intervenientes: o soldado que desce o corpo de Cristo, a presença de algum dos apóstolos, das mulheres que acompanharam a paixão e possivelmente José de Arimateia, que pediu o corpo e disponibilizou o sepulcro para Jesus. Mesmo Rubens, habitualmente tão prolífico nas suas imagens, apresenta apenas meia dúzia de figurantes na cena.

A originalidade do quadro de Domingos Sequeira á a profusão de personagens que enquadram a cena da descida, lembrando a narrativa de que Jesus fora seguido por muita gente. A cena da descida ocupa o terço direito da imagem, com as personagens habituais, muito realçada num ambiente claro e luminoso, mas evidenciando também outras componentes cénicas: a presença das três cruzes, o ar dialogante entre os circunstantes e mesmo algumas figuras angélicas simbólicas, para além de duas pensativas figuras hieráticas, uma das quais poderia ser o José de Arimateia. Sobre a esquerda, a luz difusa da paisagem da natureza ao entardecer.

A visão de Domingos Sequeira adquire assim uma dimensão de carácter universalista e de participação coletiva: a descida não é um acto isolado mas um acontecimento colectivo. Ele mereceu a atenção do povo que seguiu o acontecimento.

Após várias diligências em ordem à sua aquisição, tornou-se conhecido que o quadro foi adquirido pela Fundação da Livraria Lello, no Porto, que anunciou que vai expor a obra no Mosteiro de Leça do Balio, no dia 18 de maio. Posteriormente, o quadro irá ser exposto em museus nacionais e também mostrado no estrangeiro.

Trata-se pois de uma dimensão essencial para a cultura portuguesa, em que os cidadãos e a sociedade civil assumem papel de relevo.

 

2 Uma referência se impõe à apresentação da obra coral sinfónica Paulus, de Felix Mendelsson (1809-1847). A ideia da sua composição e transformação em obra de mensagem terá nascido ao autor após a apresentação da versão por ele recuperada da Paixão segundo S. Mateus, de J. S. Bach (1685-1750), apesentada em 1829, quase 80 anos após a sua morte, e que motivou a redescoberta da obra de Bach.

A figura bíblica de S. Paulo exerceu uma atração sobre Mendelssohn, que aos seus 27 anos a preparou e apresentou em Berlim e que mereceu acolhimento muito favorável se autores como Schumann ou Mahler.

A obra parte da narrativa dos Atos dos Apóstolos, em sete momentos: o martírio do diácono Estêvão (a que Paulo assistiu como testemunha); a conversão a caminho de Damasco e o batismo de Paulo naquela cidade. Surge depois a decisão de enviar Paulo e Barnabé para a primeira missão a partir de Antioquia e depois a incompreensão e perseguição pelos antigos companheiros, sobressaindo o propósito de que a palavra de Deus deve ser anunciada; a cena da cura de um paralítico em Listra e o projeto dos sacerdotes pagão quererem glorificar Paulo e Barnabé. A firmação do credo bíblico e cristão conduziu à perseguição contra eles; a despedida emotiva de Paulo na comunidade de Éfeso e o apelo à continuação do anúncio da fé. O último quadro reflete a própria paixão de Paulo e o sentimento da recompensa que “O Senhor , justo Juiz, lhe dará naquele dia”.

Toda a narrativa, apresentada geralmente na voz da soprano, é sempre comentada por intervenções do coro e dos outros solistas, em meditação sobre os acontecimentos. As palavras meditativas são ora prece, ora apelo espiritual, ora meditação sobre o sentido dos acontecimentos.

Obra extensa, de cerca de duas horas e um quarto (além de um intervalo), é muito exigente para a orquestra, para os solistas e para o coro, sem esquecer o maestro. Importa louvar a coragem que na direção e o maestro do coro, Tiago Ferreira, manifestaram ao escolher esta obra para celebração da Páscoa. E a coragem e cuidado da sua execução, que foi digna e cheia de unção, quer por parte dos solistas, quer do coro, nas ricas e expressivas passagens, desde o canto de abertura (“Desça sobre nós a vossa bondade, Senhor”) ao convite final (“Bendiz, minha alma, o Senhor”).  Uma saudação ao maestro, aos solistas, à orquestra e aos coralistas, à sua dedicação e seu trabalho com arte e alma.

Depois da Catedral, a obra foi apresentada na igreja de Santa Rita, em Ermesinde, em 26 de março. Mas ainda teremos todos a possibilidade de a ouvir de novo na igreja da Lapa, às 21h30 de sexta feira Santa, 28 de março.  Duas horas de estética, de louvor e de apelo de Paz!