Da história da música para a liturgia: A Quaresma

Foto: João Lopes Cardoso

Por Bruno Ferreira *

A Quaresma, um dos tempos mais fortes do ano litúrgico, é também o mais marcado por um itinerário penitencial. Também a música, quase sempre associada à beleza e ao esplendor da liturgia, é por isso convidada a adotar os estilos mais sóbrios, a limitar as manifestações de solenidade e grandiosidade, e a tornar-se veículo e instrumento de uma atitude de conversão, arrependimento e recolhimento.

O caminho quaresmal é inaugurado com a Quarta-feira de Cinzas, em que o sugestivo rito da imposição das cinzas é um momento de forte valor simbólico. Para tal momento foram criadas três antífonas particulares (Immutemur habitu, Juxta vestibulum, Emendemus in melius), enquanto os outros elementos do Proprium apresentam numerosas pistas de grande fascínio e sugestão para os compositores.

Nunes García: Immutemur habitu

 

Latim:

 

Immutemur habitu in cinere et cilicio;

jejunemus, et ploremus

ante Dominum;

quia multum misericors est

dimittere peccata nostra Deus noster.

 

[Cf. Joel 2, 13]

 

 

Tradução portuguesa:

 

Vistamo-nos de cinza e cilício,

jejuemos e choremos

diante do Senhor:

porque o nosso Deus é muito misericordioso

em perdoar os nossos pecados.

O texto da antífona Immutemur habitu, usada precisamente durante a imposição das Cinzas, é intensamente penitencial, e inspirado numa passagem do livro do profeta Joel.

A versão que apresentamos () é uma composição de José Maurício Nunes García (1767-1830), que foi um padre brasileiro e compositor de música erudita que viveu na transição entre o Brasil Colonial e o Império Brasileiro. É considerado um dos maiores compositores sul-americanos do seu tempo. Mulato, descendente de escravos, nascido pobre, mas tendo recebido uma educação sólida tanto em música como em letras e humanidades, foi um compositor fascinante, embora pouco conhecido, mas contemporâneo de Beethoven.

Esta composição é para coro a capella a quatro vozes; aqui, porém, quase toda a peça é cantada numa sóbria e severa homofonia, em que todos as vozes parecem mais declamar o texto do que cantá-lo. Os frequentes contrastes dinâmicos entre forte e piano conferem dramatismo e pathos à composição, que é permeada por um espírito intensamente contrito: nas palavras “ante Dominum“, “Diante do Senhor“, o pianissimo prescrito pelo compositor parece ser verdadeiramente um “humilhar-se” musical perante o Todo-Poderoso. Esta parca essencialidade desvanece-se um pouco no final da peça, em que a última invocação a Deus (“Deus“) parece quase oferecer uma esperança, uma saída de beleza e lirismo que se dobra suavemente no último acorde.

Cardoso: Angelis suis mandavit de te

 

Latim:

 

Angelis suis Deus mandavit de te:

ut custodiant te in omnibus viis tuis.

in manibus tollent te, ne forte

[unquam] offendas

ad lapidem pedem tuum

 

[Cf. Salmo 91(90), 11-12 (Vulgata)]

 

 

Tradução portuguesa:

 

Deus mandará os seus anjos

para que te guardem em todos os teus passos;

sobre as mãos te levarão,

para que não tropeces

na pedra o teu pe.

 

O tema do Domingo I da Quaresma manteve-se inalterado, apesar das várias mudanças nas diferentes liturgias; mesmo na transição para o ciclo trienal de leituras, o Evangelho das Tentações de Jesus foi conservado nos três anos, embora em versões evangélicas diferentes.

O Graduale prescrito para este Domingo inspira-se no Salmo 91, citado a propósito do Tentador, mas cuja mensagem conserva evidentemente toda a sua validade consoladora. É nesta certeza – a de que Deus enviará os seus anjos para guardar todos os passos daqueles que lhe são fiéis – que se inspira a versão musical do Angelis suis mandavit de te (), a 4 vozes mistas, de Frei Manuel Cardoso (1566-1650), frade carmelita e organista, principal compositor do grupo de polifonistas de Évora, um dos maiores expoentes do período áureo da música religiosa portuguesa na viragem do Renascimento para o Barroco.

Apesar da escrita simples a capella e do estilo relativamente pobre de floreados e ornamentos, a peça de Cardoso consegue transmitir uma impressão de leveza reconfortante, quase sugerindo o voo dos anjos nas frequentes escalas descendentes que pontuam os primeiros compassos da peça.

Encontramos também escalas ascendentes e descendentes sobre a palavra “mandavit“, como se os anjos fossem de facto enviados do alto para se inclinarem sobre os seres humanos e depois os ajudarem a levantar-se. Particularmente sugestiva é também a forte e marcada ênfase musical com que Cardoso sublinha constantemente a palavra “lapidem“, a “pedra” sobre a qual Deus não fará tropeçar o pé daqueles que lhe são fiéis: o ritmo dactílico, quase esculpido pelas diferentes vozes em sucessão, é um símbolo musical muito eficaz da dureza da pedra com a qual podem chocar aqueles que tropeçam e caem.

 * sacerdote e aluno de Composição no Pontifício Instituto de Musica Sacra (PIMS), em Roma