Por M. Correia Fernandes
Fomos há dias confrontados com uma especial atenção dada ao cineasta norte-americano Martin Scorcese (n. 1942). Um artigo de Manuel Pinto, publicado no jornal digital 7Margens, em 11 de janeiro de 2024, assinala por um lado a intenção declarada do cineasta de elaborar um novo filme sobre Jesus, com a intenção de tornar o Evangelho “mais acessível”, nos contextos da sociedade moderna.
Por outro lado, a Agência Ecclesia revelava em 31 de janeiro deste ano que o papa Francisco tinha recebido nesse dia em audiência o cineasta, tomando conhecimento da sua intenção e projeto de realizar um novo filme sobre Jesus. Foi recebido no estúdio adjacente ao Auditório Paulo VI, e entregou ao pap um álbum de fotografias.
O portal de notícias do Vaticano recordava igualmente que o realizador está a trabalhar no novo filme, inspirado no livro ‘Vida de Jesus’, do japonês Shasaku Endo, do qual já adaptou a obra ‘Silêncio’, que aborda a missionação da Igreja no arquipélago japonês.
Sobre a oportunidade da abordagem do tema, o Papa declarou: “Neste tempo de crise da ordem mundial, de guerra e grandes polarizações, de paradigmas rígidos, graves desafios climáticos e económicos, precisamos da genialidade de uma linguagem nova, de histórias e imagens poderosas, escritores, poetas e artistas capazes de gritar ao mundo a mensagem do Evangelho, de nos fazer ver Jesus”.
Esta mensagem foi entregue ao realizador Martin Scorsese pelo padre Antonio Spadaro, subsecretário do Dicastério para a Cultura e a Educação, tendo o cineasta afirmado a “necessidade de responder”. António Spadaro é autor de uma introdução à “Vida de Jesus”, sobre a qual o Papa escreveu que “artistas e escritores, pela natureza própria da sua inspiração, conseguem preservar a força do discurso evangélico”.
Spadaro revela que o realizador “Escreveu um primeiro guião, um primeiro argumento de um possível filme sobre Jesus. Isto para mim foi um sinal forte: a palavra do Papa, que compreendeu muito bem a dimensão cinematográfica que há neste livro, tocou o coração de um grande realizador e fê-lo querer retratar Jesus de uma maneira nova”, em entrevista à Agência Ecclesia.
Esta notícia e este acontecimento devem dar origem, por um lado, a uma redescoberta do cineasta Martin Scorcese, e por outro a uma recordatória sobre os filmes dedicados à figura da Jesus, à sua história e à sua mensagem.
As obra de Martin Scorcese
Sobre Scorcese, importaria lembrar as obras que se tornaram conhecidas e reveladoras da sua qualidade de realizador, e dos polos de atenção que procura em relação a sociedade.
Do conjunto das suas obras sobressaem títulos como Taxi Driver, Touro enraivecido, New York, New York, Rei da Comédia, A Última Tentação de Cristo, Tudo Bons Rapazes , Cabo do Medo, O Lobo de Wall Street, A idade da Inocência , Silêncio , O Irlandês. A sua obra de 2023, Killers of the Flower Moon, Assassinos da Lua das Flores mereceu referências muito positivas da crítica cinematográfica, ao lembrar factos históricos que conduziram à eliminação de uma tribo americana por interesses de domínio territorial e social.
Tem vindo a receber reconhecimento através dos prémios dos diversos festivais cinematográficos como melhor diretor e melhor filme. Neste último filme, Assassinos da Lua das Flores, Scorsese foi buscar uma indígena, Lily Gladstone, originária da nação Osage, um povo cuja história remonta pelo menos ao séc. VII antes de Cristo, em território hoje dos estados do Ohio e Mississipi. O realizador procurou retratar a vida dessa comunidade, através da protagonista interpretada por Lily Gladstone, que ao ver-lhe atribuído o prémio de melhor atriz, nos Globos de Ouro 2024, tornou-se a primeira indígena a conquistar tal troféu, tendo no agradecimento usado a sua língua de origem.
A obra do cineasta tem-se debruçado sobre múltiplos aspectos humanos que caracterizam a sociedade americana, nos seus quadros sociais e em figuras humanas que a caracterizam, recorrendo a atores que ele próprio tornou notáveis, como Robert de Niro, Al Pacino ou Leonardo Di Caprio.
Dos filmes anteriores de Scorcese, importaria lembrar A Última Tentação de Cristo (1988), baseado na obre a Nikos Kazantsakis, que constitui um universo de interpretações sobre episódios da vida de Cristo, incluindo a sua Paixão. A perspectiva seguida é a de mostrar a dimensão humana dos acontecimentos e a realidade histórica de Jesus, por um lado pessoa humana e por outro como Filho de Deus. A vivência desta contradição passa por um estranha confronto contrastivo das condições do homem comum em confronto com a mensagem salvífica a transmitir. A última tentação é precisamente essa: a de se tornar alguém com a vida comum da condição humana: casamento, família, o quotidiano da vida. A visão é a das vivências de um ser humano perfeito e da vivência estranha de uma realidade divina. Segundo o autor, procurou propor outra perspectiva da vida de Jesus a partir da leitura da sua identidade humana.
Alguns classificam-no com obra contemplativa, reflexiva e simbólica. Para outros o confronto com a realidade teológica cristã acaba por criar rejeições.
Os filmes de inspiração bíblica
Os filmes, bastante numerosos, de inspiração bíblica, e sobretudo revelando a vida de Cristo, têm servido de tema a apresentar normalmente por ocasião da Semana Santa. A experiência ensina que a qualidade deles é muito diferenciável, geralmente procurando uma dimensão religiosa, apologética, valorizam os aspectos sentimentais dos acontecimentos.
Se procurássemos fazer escolhas por critérios de qualidade e de historicidade, teríamos que referir o Evangelho segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini (1966), que constitui uma leitura quase completa do texto evangélico, numa perspetiva que procura aproximar-se de uma realidade histórica e social do seu tempo, pela gravação em preto e branco e pela escolha de atores não profissionais.
Haveria que referir Jesus de Nazaré, de Franco Zefirelli (1977), normalmente dividido em quatro episódios, constituindo também uma leitura dos acontecimentos enquadrados no tempo, com o rigor de construção que caracteriza a obra do autor.
Títulos como O rei dos Reis (Nicholas Ray, 1961) ou A maior história de todos os tempos (superprodução que reúne os realizadores George Stevens, David Lean, Jean Negulesco, 1965) podem ser confrontados com o mais recente A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, que exagera excessivamente nas cenas de violência.
O Rei dos Reis (1961), filme de Nicholas Ray, segue os esquemas monumentais americanos, com a abundância de figurantes interpretando acontecimentos como o sermão da montanhas, a multiplicação dos pães ou a própria Paixão.
Pode também lembrar-se o Jesus Cristo Superstar (1973), filme de Norman Jewison, interpretação para valorizar a criação de uma ópera rock, valorizando a leitura sobre as últimas cenas da paixão.
Mas pode encontrar-se também uma visão suave em O Jovem Messias (2016), apresentando Jesus sob a perspectiva da infância, momento pouco abordado no cinema e naturalmente um exercício de ficção imaginativa.
Nos passos do Mestre (2016) é uma apresentação brasileira, dirigida por André Marouço que traz uma nova perspectiva sobre a passagem de Cristo na Terra, apresentando dramatizações de trechos da vida de Jesus e de Allan Kardec, fundador do espiritismo. Vários episódios evangélicos são contestados pela visão espírita.
Entre nós seria indispensável lembrar o Acto da Primavera (1963), de Manoel de Oliveira , apresentando a vivência popular da história da Paixão na aldeia de Curalha, em Trás os Montes, uma verdadeira descoberta da capacidade popular para exprimir a vivência do mistério da Paixão, a partir do evangelho e da tradição cristã.
Noutra perspectiva, importaria também reportar O Filho de Deus (2014), dirigido por Christopher Spencer, em que ao ator que representa a figura de Cristo é o português Diogo Morgado.
Haveria que ir até ao ano de 1927 para encontrar Rei dos Reis (1927), com os episódios mais conhecidos, dirigido por Cecil B. De Mille, também autor de outra realização sobre Os Dez Mandamentos (1956), que lembra a história do povo hebreu e a saída do Egipto, cujo tema e enquadramento já havia sido abordado em 1921.
Há inda obras anteriores do cinema, dado que a vida de Jesus foi sempre merecedora de atenção para o espetáculo.
Neste contexto, haverá que aguardar a anunciada obra de Scorcese e a sua interpretação da figura de Cristo, nos contextos da sociedade moderna.