Sobre o centenário de Luís de Camões

Por M. Correia Fernandes

Tem-se falado na imprensa e nas redes sociais acerca dos quinhentos anos do nascimento de Luís de Camões, dando como suposto que o nascimento de Luís Vaz tenha ocorrido em 1524. No entanto, dado que não podemos dispor de documentação que fundamente a certeza desta data, tem sido usual considerar que o ano do seu nascimento tenha sido em 1525.

A Câmara Municipal do Porto procurou louvavelmente assinalar a efeméride do nascimento com a efeméride de outro acontecimento bem mais referenciável: a publicação de Os Lusíadas, no ano de 1572, em que se considera a existência de duas edições, com pequenas diferenças, particularmente duas: no frontispício de uma o pelicano que o encima  está voltado para a esquerda e na outra está voltado para a direita; e no sétimo verso da primeira estrofe uma começa “E entre gente remota edificaram”, enquanto a outra diz apenas “Entre gente remora edificaram”. Daí que seja usual designá-las respectivamente pela edição E,  e a edição Ee. Está claro que o sentido final é o mesmo,  mas a segunda versão faria supor a continuidade do sentido do verso.

Aquilino Ribeiro defendeu a prioridade da edição E, enquanto outros entendem que seja primeira a edição Ee. O questionamento deste dado pode ser interessante, mas não encerra nada de essencial sobre o valor do poema.

O poema foi publicado com privilégio real, e vinha precedido de uma cláusula de Frey Bartolomeu Ferreira, que afirma: “E por isso me pareceo o liuro digno de se imprimir, & o Autor mostra nelle muito engenho & muita erudição nas sciencias humanas. Em fe do qual assiney aqui. Frey Bertholameu Ferreira”.

Importa realçar e valorizar criticamente a compreensão deste religioso pelo valor da obra, apesar das passagens menos virtuosas que possa encerrar.

A Câmara Municipal do Porto decidiu organizar já no início deste ano de 2014 uma exposição de vários exemplares da primeira edição de “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões, patente no próprio edifício da Câmara, para assinalar os 500 anos do nascimento do poeta português. A exposição é de entrada livre e está disponível de quarta a sábado.

Lembra-se que da primeira edição do poema se refere que são conhecidos 34 exemplares, que se encontram em três continentes, distribuídos por várias bibliotecas, públicas e privadas e mesmo como propriedade de algumas entidades privadas. Cremos ter entendido que a Biblioteca Nacional de Madrid possui dois volumes desta edição.

Na cidade do Porto encontra-se uma dessas edições, na biblioteca do Ateneu Comercial do Porto. Segundo informação divulgada, a obra foi adquirida em 1904 por 170 mil réis (que equivaleriam a 85 cêntimos na moeda atual, segundo declarou o presidente desta Associação, Rogério Gomes, na apresentação da exposição à imprensa.

Em 1980 a Universidade de Granada elaborou uma homenagem nos quatrocentos anos da morte de Camões, segundo a tradição também, ocorrida em 1580, teria então o poeta o idade de 55 anos. Nessa Homenagem contribuí com um texto que lembra os escritos de Aquilino Ribeiro sobre Camões, em que se aborda a questão da primeira edição dos Lusíadas.

Quando nasceu Camões?

Sobre a data do seu nascimento encontram-se opiniões diversas. Quem tenha aventado a data de 1524 apresenta um fundamento que não pode merecer muita credibilidade, baseado no soneto “O dia em que nasci moura e pereça”, por haver notícia de um eclipse nesse dia, que outros aliás situam em 1525. No dizer de muitos estudiosos de Camões, esse argumento não pode merecer particular credibilidade. Nem Manuel de Faria e Sousa (1590-1649), o mais insigne camonista desde o princípio, que lhe dedicou o que muitos consideram o mais aprofundado estudo que alguém dedicou a um autor, não assegura a data do nascimento, embora lembre que um registo da Armada de 1550, atribui a Camões a idade de 25 anos. Este documento referido por Faria e Sousa, faz supor que o nascimento teria acontecido em 1525, e corrigindo outra data que também tinha sido anunciada, a de 1517. Por outro lado, parece ser comummente aceite a cidade de Lisboa como local do seu nascimento.

Faria e Sousa escreveu o seu comentário em língua espanhola sobre Lusiadas, de Luis de Camoensprincipe de los poetas de España, seguindo o texto do poema, comentando cada estrofe, e mais tarde também redigindo um comentário à Rymas Várias de Camões, a quem chamava “mi poeta”, tal foi a afeição que o conhecimento da sua obra lhe foi provocando.

O que importa salientar é que a obra de Camões possui uma grandeza tal que mereceu, não apenas em Portugal, mas em toda a Europa a atenção e o comentário e estudo aprofundado dos maiores críticos da Literatura Portuguesa no século XX, em que devemos lembrar Fidelino Figueiredo, Jorge de Sena, Óscar Lopes, Hernâni Cidade, e todos os autores que valorizaram a tradição literária e cultural através dos tempos.

Como é reconhecido, foram elaboradas a partir do século XVIII, importantes edições de Os Lusíadas, muitas das quais ilustradas com obras de pintores reconhecidos, de que sobressai a edição chamada edição do Morgado e Mateus, publicada com data de 1817, publicada em dois volumes, em Paris ilustrada com desenhos originais de pintores franceses. A edição foi difundida pelas casas reais e instituições culturais da Europa, incluindo do Papa Pio VII (1742-1823).

É certamente oportuno recordar o nascimento de Luís de Camões, mas recordar sobretudo a sua obra. Para além de Os Lusíadas, é bom lembrar, por exemplo as redondilhas bíblicas, chamadas Sôbolos rios, inspirada no salmo 137, em que o salmista recorda o tempo do exílio e a sua libertação, e em que o poeta exprime os dramas existenciais e a esperança cristã da salvação, desenvolvendo os conceitos de Jerusalém (Sião) e Babilónia, como símbolos dos caminhos da salvação e do mal.

Fique logo pendurada / A frauta com que tangi,
Ó Hierusalem sagrada,/ E tome a lyra dourada
Para só cantar de ti; /Não captivo e ferrolhado
Na Babylonia infernal,/Mas dos vicios desatado,
E cá desta a ti levado,/ Patria minha natural.

Conclui estas redondilhas com a aspiração:

Ditoso quem se partir

Para ti, terra excelente,
Tão justo e tão penitente,
Que despois de a ti subir,
Lá descanse eternamente!

Comemore-se então o nascimento do poeta, mas leiam-se as suas mensagens de paz, em tempos de destruição.