Por padre Bruno Ferreira
Aluno de Composição no Pontifício Instituto de Musica Sacra (PIMS), em Roma
Festa da Apresentação de Jesus no Tempo
No dia 2 de fevereiro a Igreja celebra uma importante festa, que comemora o décimo quarto dia do nascimento de Jesus, celebrado no Natal. Nessa ocasião, segundo o Evangelho de Lucas, Jesus foi levado ao templo como primogénito oferecido ao Senhor, e cumpriu-se também o tempo da purificação da Virgem.
A narração evangélica apresenta-nos as figuras de Simeão e Ana, os dois profetas anciãos que cantam a salvação de Israel reconhecendo-a no Menino Jesus, enquanto Simeão pronuncia também o cântico do Nunc dimittis (mais tarde adotado pela Igreja na liturgia quotidiana das Completas) e anuncia a Maria o papel salvífico de Jesus no sofrimento da cruz.
A liturgia desta festa está também muitas vezes ligada a ritos de luz com velas, razão pela qual esta festa é também conhecida como a Candelária. Por sua vez, a festa mudou frequentemente de nome, sendo referida como Purificação da Virgem ou Apresentação de Jesus no Templo.
Arcadelt: Hodie Beata Virgo Maria
Latim:
Hodie beata virgo Maria puerum Jesum presentavit in templo et Simeon repletus Spiritu Sancto accepit eum in vulnas, et benedixit Deum, dicens: Nunc dimittis servum tuum, Domine, secundum verbum tuum in pace.
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Tradução portuguesa:
Hoje, a Virgem Maria apresentou o Menino Jesus no Templo, e Simeão, cheio do Espírito Santo, recebeu-o nos seus braços e bendisse a Deus, dizendo: “Agora, Senhor, deixa o teu servo ir em paz, segundo a tua palavra”. |
A Antífona do Magnificat das segundas Vésperas da Festa da Apresentação no Templo é uma paráfrase da narrativa evangélica e incorpora os primeiros versos do Nunc dimittis.
Jacob Arcadelt, Jakob Arcadelt ou Jacques Arcadelt (1507-1558), compositor renascentista da escola franco-flamenga, músico distinto, crescido sob a influência de Josquin des Prez e da Escola belga é, na verdade, mais recordado pelas suas composições profanas (sobretudo os madrigais, cuja expressividade comovente se tornou proverbial) do que pelas composições sacras; no entanto, é precisamente a sua capacidade de transmitir emoções através da cuidadosa interpretação musical do texto verbal que torna as suas composições religiosas particularmente intensas e comoventes.
Este é certamente o caso do seu Hodie Beata Virgo Maria [SATB] (https://spoti.fi/2XcNT5K ), que aqui apresentamos numa interpretação em que as partes vocais, com exceção da parte superior, são executadas por instrumentos de sopro. Embora o resultado sonoro seja sem dúvida cativante, e a prática seja atestada na época deste modo, o cuidadoso contraste entre secções imitativas (em que as diferentes vozes estão temporalmente desfasadas e pronunciam o texto em tempos diferentes) e homofónicas, em que o ritmo, ao contrário, é único.
De facto, Arcadelt inicia a peça com passagens de fluida polifonia, enriquecida por numerosas escalas, e adopta depois uma escrita homofónica nas palavras “et Simeon/repletus“, que ganham assim uma notável pungência e vigor declamatório.
Quando, por outro lado, o texto fala do acolhimento de Jesus nos braços de Simeão, as vogais são suavemente dispostas em torno umas das outras, quase como que para evocar a ternura do profeta ancião; a homofonia regressa, quase perfeita, nas palavras “et benedixit Deum“, que são assim novamente colocadas em grande relevo. Mais impressionante ainda é a interpretação musical das primeiras palavras do Cântico de Simeão, não só cantadas em homofonia, mas até declamadas quase só na mesma nota, como numa recitação entoada.
Em contraste, as palavras “in pace” são apresentadas como escalas ascendentes que dão força à música, como que a sugerir que a paz que Simeão pede como dádiva de Deus é também o facto de ser atraído por Ele para o Céu.