Por M. Correia Fernandes
Possui vários caminhos de significado o facto de que José Tolentino de Mendonça, Cardeal da Igreja e Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação da Santa Sé, tenha proferido na Assembleia da República Portuguesa uma conferência sobre Liberdade Religiosa (com o próprio Presidente Augusto Santos Silva, sob a coordenação da anterior Ministra da Justiça, Francisca Van Dunem) e de no dia imediato ter sido anunciada a atribuição do Prémio Pessoa a esta figura do entorno da Santa Sé, e também professor, poeta, pensador e autor de numerosas obras de reflexão sobre a visão cristã e sentido humano e espiritual do mundo, publicadas e traduzidas em várias línguas, homem de pensamento e de interpretação do sentido da vida e da história humana. Entretanto, pela mesma ocasião, Tolentino de Mendonça recebeu também o doutoramento “honoris casa” pela Universidade de Aveiro, juntamente com Céline Cousteau, especialista em ação ambiental e ecologia.
O Prémio Pessoa é uma criação do semanário Expresso e da Caixa Geral de Depósitos, com a intenção de destacar uma personalidade portuguesa que anualmente se tenha evidenciado na via cultural, artística ou científica na sociedade portuguesa.
Atribuído desde o ano de 1987, distingui figuras de vários campos da cultura, da arte, da investigação científica e das artes cénicas. Importará referir que não é a primeira vez que o prémio é atribuído a uma figura da Igreja, visto que D. Manuel Clemente, na altura Bispo do Porto, o recebeu em 2009, pelo reconhecimento também da sua carreira académica. De entre os galardoados com o prémio podem referir-se nomes de vários sectores do saber, da ciência e da cultura, como José Mattoso (o primeiro que o recebeu), António Ramos Rosa, Maria João Pires, Vasco Graça Moura, João Lobo Antunes, Manuel Sobrinho Simões, Mário Cláudio, Eduardo Lourenço, Frederico Lourenço e João Barreto Guimarães, o seu anterior titular antes do atual.
A figura de Tolentino de Mendonça, atualmente cardeal, é certamente reconhecida pelo seu trabalho nos domínios da poesia, da investigação e escrita poética e de pensamento. Também por este conjunto da qualidades mereceu o convite para apresentar na Assembleia da República uma reflexão sobre liberdade religiosa, ao comemorar-se na Assembleia a Lei de 2021 sobre o tema, que deu origem a uma exposição, coordenada por António Marujo, com o tema “Os caminhos da liberdade religiosa em Portugal”, inserida no âmbito das iniciativas que decorrem para assinalar o Dia Nacional da Liberdade Religiosa e do Diálogo Inter-religioso, a qual se encontra patente de 14 de dezembro de 2023 até 28 de fevereiro de 2024, no Átrio Principal do Palácio de S. Bento.
É significativo que tenha sido dada a esta iniciativa da AR a designação de “As religiões como património da Humanidade”, lembrando o Dia Nacional da Liberdade Religiosa e do Diálogo Inter-religioso, mesmo tendo em conta que cerca de um terço dos países do mundo não aceitem oficialmente a liberdade religiosa e em muitos deles ocorra mesmo oposição ou perseguição às práticas religiosas.
Os valores da liberdade religiosa
Importaria registar algumas ideias centrais da comunicação de José Tolentino de Mendonça, ou ouvido das suas palavras:
Seja a primeira a afirmação de que as religiões constituem um dado sapiencial da Humanidade, afirmando o sentido da sacralidade da vida humana: é esta como que uma posição de princípio subjacente à universalidade do fenómeno religioso.
Uma outra afirmação de princípio traduz-se nas palavras: as religiões não convidam à violência e uma política ou denominação que falam do sentido religioso das lutas ou das guerras nada tem a ver com o essencial da religião cristã ou das religiões. Deduz-se que não há guerras ditas “religiosas”, mas tal denominação traduz apenas situações em que os poderes ou os interesses pelo poder recorrem à violência como forma de domínio das populações.
A experiência religiosa conduz ao cuidado da criação e do mundo (tema evidenciado nos últimos escritos do papa Francisco); desenvolve uma ética de responsabilização de toda a ação humana em relação à terra e ao mundo que nos envolve, o que implica a necessidade da busca de soluções integrais e sistémicas de orientação das convicções e atuações, em ordem a proteger, salvaguardar e cuidar a vida.
Outra dimensão da experiência religiosa é a dimensão estética da beleza, o que conduziu à expressão do sentido religioso nas obras de arte: a experiência religiosa conduz à sua tradução pela criatividade estética nas mais variadas formas de arte, na palavra, na poesia na arquitectura, na pintura, na música, no cinema. Da literatura lembrou a poesia de Sophia de Mello Breyner e uma passagem de José Saramago que não se afirmando crente se perguntava como pode nascer o mundo.
Lembrou que em muitos lugares da terra o direito ao universo religioso ainda é um privilégio, que muitas vezes nem sequer é aceite.
Religião e laicidade
O modo como a homem se relaciona com as religiões relaciona-se também com as teses do chamado estado laico, propondo-lhe a dimensão e a missão de mobilizar as pessoas na descoberta do sentido espiritual da vida e dos valores humanos como a solidariedade, a compaixão, a entreajuda, a procurado bem comum.
Insistiu no valor da realidade religiosa como elemento fulcral da própria humanidade e da sua condição: a dimensão da mente e da contemplação equilibram a condição da pessoa.
Neste sentido da dimensão humanista da religião se pronunciou igualmente Augusto Santos Silva, considerando que Portugal é um exemplo mundial em termos de respeito pela liberdade religiosa, e que essa dimensão deve ser acarinhada na opinião pública, com o respeito pelas diferenças.
Um voto foi proposto pelo presidente do Parlamento, e subscrito pelo conjunto dos deputados, que o votaram em plenário “exprime bem a compatibilidade entre a natureza laica do Estado e a importância espiritual, cultural e social do fenómeno religioso, reconhecendo e valorizando plenamente a liberdade de fé”. Essa garantia é “devida a todas as religiões em condições de igualdade, independentemente da sua representatividade, com o único limite do respeito pelos valores constitutivos da sociedade democrática”.
Afirma ainda o documento que o Estado português “reconhece o pluralismo das expressões religiosas, assim como o diálogo dentre elas”, o que se deve entender como a “emanação da essência da própria democracia: reconhecer e respeitar as diferenças e a pluralidade que nos distingue e enriquece enquanto comunidade, incentivando e promovendo os consensos”.
Todo este universo de questões nos deve fazer refletir sobre a situação atual no mundo em matéria de liberdade religiosa. A organização pontifícia “Ajuda à Igreja que Sofre” tem vindo a divulgar (como temos visto aqui VP) situações dolorosas de perseguição religiosa em muitos países em todos os continentes.
Entramos num Natal que não vai ser possível celebrar em Belém. Em quantos outros locais da terra não será possível a sua celebração em fé e liberdade?
Jesus nasceu: Feliz Natal