“Pela aragem se vê…” – “Quem vê caras…”

Por João Alves Dias

Hoje é dia de S. Nicolau.

A paróquia do Porto que o invoca como padroeiro, mais uma vez, o acolhe em festa.

Cumprindo a tradição, ‘S. Nicolau’, com seus acólitos, desembarca no Cais da Estiva ou na Alfândega. À sua chegada, as crianças aclamam-no em coro: São Nicolau! S. Nicolau! S. Nicolau!… Enquanto o ‘Santo’ lhes sorri, abençoa e afaga…

É uma cena de grande ternura que comove as pessoas de mais idade também presentes.

No ano passado, coube-me assumir a representação do bondoso santo, que foi bispo de Mira, na atual Turquia. E fi-lo com muita emoção pela grandeza da personagem e porque, ao longo de muitos anos, quem a assumiu foi o senhor Ruiz, um amigo de que guardo gratas recordações.

A cerimónia de acolhimento, que incluiu uma saudação do ‘Santo’ e uma palavra do pároco, P. Jardim, terminou com uma atuação duma Tuna Académica. E ‘S. Nicolau’ prometeu aos meninos que, nos dias seguintes. iria levar-lhes os seus presentes. E foi.

O episódio que motivou esta reflexão aconteceu na escola de S. Nicolau.

Enquanto aguardava o início das cerimónias, a pequenada rodeou-me, esperando uma carícia e tocando nas minhas vestes que, para além da mitra, incluíam um vistoso pluvial. Das muitas perguntas com que me brindaram, retive a dum rapazinho:

– “Tu és rico?” – “Não, sou pobre”, respondi. – “Com essa roupa!…”, retorquiu, admirado, porque a afirmação contradizia o que via…

Evoquei esta perplexidade, ao ver a reportagem televisiva do último Consistório de investidura dos novos Cardeais.

O bom Papa João XXIII, quando convocou o Concílio Vaticano II, disse: “Espero que traga um pouco de ar puro… Há que sacudir a poeira que, desde Constantino, se vem acumulando no trono de S. Pedro”.

O ar fresco chegou… E o Concílio apresentou o paradigma de uma Igreja cujo mistério radica em Cristo pobre que rompe com o modelo herdado do Império Romano – uma Igreja instalada no poder e na opulência. D. António gostava de dizer que era o fim da “Igreja Constantiniana”.

Sessenta anos são passados. E a poeira do tempo – de que é reminiscência a investidura cardinalícia – continua a desfigurar o rosto e a embaciar os olhos da Igreja.

Em 2017, o Papa Francisco disse aos Cardeais: “Jesus segue à frente de vós e pede-vos que O sigais decididamente pelo seu caminho. Não vos chamou para vos tornardes ‘príncipes’ na Igreja. Chamou-vos para servir como Ele e com Ele.”

Ao ver a magnificência do Consistório de 2023, veio-me à mente, por contraste, a figura dum Papa a caminhar, curvado sob peso duma humanidade em sofrimento, em março de 2020, numa Praça de S. Pedro, completamente vazia. Ali estava a Igreja solidária, pobre e peregrina de que falava o Vaticano II. E interroguei-me…

Diz-se que o vermelho das vestes representa o sangue de Cristo porque, ao receber o barrete, os Cardeais comprometem-se a defender a fé até ao ponto de dar o seu sangue. Será? Se assim fosse, não mereceria tanta atenção dos ‘meios de comunicação social’…

Não será, antes, porque o uso do vermelho – um privilégio dos ‘Patrícios’, membros do Senado, a elite do Império Romano – surge como símbolo de poder e opulência?   Isso, sim, garante grandes audiências e atrai as televisões…

Como são difíceis de tirar as nódoas que, com o tempo, se vão acumulando e nos mancham o rosto…

Quando assim refletia, chegou-me um texto do jornalista António Marujo de que, com vénia, transcrevo:

“O discurso dos papas, claramente, mudou (…)  Mas tudo, a começar nas vestes (…) e a acabar na linguagem eclesiástica sobre o tema (continua, por exemplo, a falar-se da “elevação” a cardeal) remete para o oposto disso.

Não estão em causa as pessoas concretas investidas sábado passado como cardeais ou o conjunto do Colégio Cardinalício. É mesmo a instituição e o modelo.” (7Margens, 5/10/2023)

Com razão, os provérbios – ‘leis empíricas’ da sabedoria popular –  dizem “pela aragem, se vê quem vai na carruagem”, mas também “quem vê caras, não vê corações”…