Uma leitura do filme “Amor em Águas Agitadas”
Por Alexandre Freire Duarte
Eis um filme que não esperava. De todo. Eis uma obra que esquecerei. De certeza. Mas convidado a vê-lo numa destas plataformas de filmes, deixei-me cair na armadilha. “Amor em Águas Agitadas” é uma caótica (mas amena) mistura de géneros que pode levar ao desapontamento, sobretudo porque essa mescla forma um leque que é mera distração para o que poderia ser apenas uma bela história de amor: mistério sem mistérios; humor sem humor; crítica social sem crítica social. No fim, o único mistério, o único humor e a única crítica social com que ficamos é o do enigma invertido do amor.
Kikuchi (corajoso na sua humildade e bondade) e Miyazaki (corajosa e espirituosa) são irrepreensíveis, mesmo com histórias pessoais superficiais. Contudo, as demais personagens, mesmo com estilo, parecem simples figuras bidimensionais sem qualquer espessura e demasiado caricaturescas. A fotografia, essa, é fascinante na sua beleza, todavia, até isso incrementa a desilusão face a uma edição final forçada e conformada, incapaz de unir os diversos fios narrativos que nos foram expostos ao longo desta obra.
Devo confessar que, apesar de falar ao longo desta rubrica em teologia e em ser teólogo, não sou nem analfabeto nem “uma espingarda”. Escrevo como sei e como faço, tentando mostrar que viver em Deus também é ver como Ele. A partir deste facto, esta obra, com os seus clichés familiares, desperta para dois pontos principais: primeiro, o do amor assolado por uma paixão efémera; segundo, o de uma realista denúncia social.
Acerca do primeiro, admito que foi curioso ver uma abordagem japonesa ao tema, mormente dentro do contexto de uma série de infrações das barreiras socioeconómicas. Mas quem senão o místico e o tentativo-místico que é o poeta para falarem disso? Não escrevo poesia no ChatGPT, e de místico nada tenho, mas estou confiante quando digo que o amor genuíno é sempre uma participação no Altar do Senhor que nos permite ver o mais íntimo da realidade. O resto é sempre um simulacro de uma indigência infinita.
Somos seres que necessitam do amor de Deus para se verem realizados. Mas divinizando-se o amor e, pior ainda, a paixão que cega e tolda a ponto de (como neste filme) chegar a louvar a infidelidade, acabamos a demonizar esse mesmo Deus e os Seus apelos desarmados, os quais, assim, se nos escapam. E escapam, não por estarmos longe d’Ele, mas devido a uma recolhida proximidade infinita do Mesmo que, não fora a nossa distração, poderia levar a vivermos guiados pelos toques secretos do Espírito de Jesus.
Do segundo, a história está cheia de vivências que nos alertam para o facto de que se há gente parasita que vive da riqueza e da influência social dos seus pais e amigos (num mundo em que o ser aplicado e a meritocracia parecem ausentes), isso se deve mais ao egoísmo desses pais e amigos do que ao de tais tristes raposas. Ao egoísmo de quem, nunca havendo conhecido o mistério de abrir as palavras sem dispersar o espírito, jamais soube dizer aqueles “nãos” que não são o fim do amor, mas uns dos seus (re)começos.
Ignorar isto, é alargar o abismo do drama divino-humano de Deus, serrando o alcance da nossa ação em prol de todos. Quantas pessoas à nossa volta se sujeitam, para ter (e dar) o que comer, a serem “para-raios” das raivas e luxúrias interiorizadas dos seus superiores e colegas? Onde está o amor nisto? Onde estão as nossas denúncias disso?
(Japão; 2023; dirigido por Yûsuke Taki; com Rinko Kikuchi, Aoi Miyazaki, Ryô Yoshizawa, Yoh Yoshida e Saki Takaoka).