O Cinema visto pela Teologia (88): “Vidas passadas”

Uma leitura do filme “Vidas Passadas *

​​Por Alexandre Freire Duarte

Devido a ter que escrever, quase sem intervalo, dois textos para esta rubrica, fui, aos meus enrugados lembretes, buscar um filme visto neste Verão, com um padre amigo, no Fest 2023 de Espinho: “Vidas Passadas”. Esta obra, que talvez só chegue ao cinema comercial no próximo ano, é um formidável e emocionalmente íntimo drama romântico, que refresca pela sua sabedoria de vida, beleza polida e nostalgia transformadora. Às vezes é narrativamente difuso, mas é uma experiência a ser vivida, também porque dá-nos a sensação de estarmos a “respirar” o que nos envolve com sensibilidade e realismo.

A composta Lee, o vulnerável Yoo e o ansioso Magaro são um trio estupendo de figuras, a quem a diretora dá espaço para construírem, com graça e esmero, silêncios eloquentes e respeitos tão expressivos quão controlados. Com as câmaras a serem movidas com teima (às vezes errante), a música a ser meditativa e os cenários repletos, no meio da verticalidade citadina, de azuis aguados e verdes telúricos, tudo se harmonia.

Este filme tem diversas camadas, cada uma merecedora de uma enorme meditação teológica. Pondo-se de lado a crença racionalmente inconsistente e insatisfatória da reincarnação que é uma projeção do desejo de não haver uma responsabilidade final, “Vidas Passadas” é uma obra sobre a difícil passagem para a maturidade da vida e do amor. A maturidade do fim do Verão da vida feita de escolhas convida a não esquecê-las e a elas sermos fiéis, por mais que também nos traga à memória caminhos que elegemos não trilhar. Caminhos que, mentalmente, nos fazem parecer equilibristas da plangência.

Não me recordo de ver o amor conjugal a ser tão bem retratado como nesta obra: um amor que (apesar de hipóteses passadas nunca solidificadas e de jamais ser perfeito e sem feridas) não se identifica com redemoinhos de emoções, mas com a fidelidade e os limites espirituais, as negações ao nosso “ego” e o cumprir de compromissos que tal vida acarreta. Nada, pois, de um qualquer imaturo “segue o teu coração” que exija, contra a verdade desse mesmo coração em Cristo, quer o manter as escolhas sempre abertas e flutuantes, quer “divertir-se” incessantemente com todas as possibilidades existentes.

Sim: às vezes transgredimos e tergiversamos aquela fidelidade, nem que seja com o olhar. Mas admitir-se, e falar-se sobre isso com quem amamos – seja com genuíno desejo de nos emendarmos e arrepiarmos caminho acima no amor, seja com aquela confiança de que quem magoámos nos vai tentar amar ainda mais no perdão – reconcilia, no aconchego da ternura, os corações dados mutuamente no matrimónio. Sem isto cairemos no vórtice da usura da solidão espinhosa em que quiçá acabaremos a nos odiar.

Não tenhamos dúvidas: a opção mais radical, mais ousada, mais excitante e mais trepidante no amor (inclusive o romântico) é a que nos dizem ser a mais “aborrecida”: o sermos responsáveis com as nossas vidas e as dos demais com quem nos envolvemos, porventura até ao casamento e ao dom de partilharmos, com Deus-Amor, a dádiva da vida. Uma vida que, em Jesus, nunca é um desenlace, mas um zelo em avançar. E avançar, sem qualquer réstia de medo no lugar da audácia, no que seria uma úlcera no amor do Deus-Amor, mesmo quando nos refugiássemos em preces de fuga em “altura”.

(* EUA e Coreia do Sul; 2023; dirigido por Celine Song; com Greta Lee, Teo Yoo, John Magaro e Moon Seung-ah).