“O vento está à ‘Pia’, vai chover…”

Por João Alves Dias

Já cheira a ‘S. Martinho’…

Nascido, no século IV na Panónia, na atual Hungria, é conhecido como o ‘Apóstolo da Gália’ (França) porque a sua pregação está na base da conversão das suas gentes.  Foi bispo de Tours onde morreu (397) e está sepultado.

O seu culto foi divulgado na nossa terra, no século VI, por um outro Martinho, também da Panónia, que fundou o mosteiro de Dume, perto de Braga. ‘S. Martinho de Dume’ foi o ‘Apóstolo dos Suevos’. Segundo a tradição, a ele se deve a fundação da igreja de S. Martinho de Tours, em Cedofeita, no Porto.

A popularidade deste santo, mais conhecido pelo ‘milagre de S. Martinho’, rapidamente se espalhou e, ainda hoje, se manifesta:

Nos Provérbios – “Se o inverno não erra o caminho, tê-lo-ei pelo São Martinho”. E muitos outros.

Nas Paróquias – Numa consulta rápida ao Anuário da nossa diocese, encontrei 39 freguesias que o invocam como padroeiro. Entre elas, por coincidência, estão Soalhães, Campo e Cedofeita, onde eu e minha esposa nascemos, bem como nossos pais, filhos e netos.

Nas Lendas – Das muitas que povoam a nossa cultura, partilho convosco a de S. Martinho de Valongo, colhida no “Inquérito Arqueológico da Diocese do Porto” realizado em 1957, sob a orientação do, então, reitor do Seminário da Sé, Dr. Pinho Brandão.

“Merece especial menção a chamada “Pia” ou “Pia de S. Martinho” que deu nome a toda a serra em que se situa. É uma cisterna natural, aberta na rocha, no cimo do monte. A tradição diverge acerca da sua origem.

Uns dizem que foi S. Martinho que passou por aqueles sítios. Ao chegar ao alto, o cavalo sentiu sede. Então, S. Martinho bateu com o bordão naquele penedo e imediatamente se formou uma cavidade na fraga da qual brotou água que a encheu totalmente.

Outros dizem que não foi S. Martinho, mas o seu cavalo que abriu a pia com uma patada, por isso, lá estão as duas ferraduras: uma no fundo, da pata que bateu, e outra fora, da pata pousada.

Segundo outros, não se tratou de S. Martinho, mas dos mensageiros que tinham ido a Tours buscar relíquias do Santo para a igreja de Cedofeita. No regresso, vinham pregando e baptizando. Ao passar pelo lugar onde hoje existe a ‘Pia’, sentiram sede.

E a tradição volta a divergir: alguns dizem que foi nesta ocasião que, miraculosamente, abriram a Pia para se saciar bem como aos cavalos; segundo outros, a Pia já existente, por matar a sede a tão santos mensageiros, recebeu dons especiais.

Refeitos, descansam na planura que se estende no cimo do monte: o “Campo de São Martinho”. E desdobram os seus olhares pelo formoso vale que se estendia a seus pés; e uma exclamação de prazer brota da sua alma: ‘Que vale longo!…’

Com a alma em festa, descem com o desejo ardente de guiar, para o Deus de toda a beleza, os habitantes de terra tão encantadora. Começam a pregar e aquela terra, ainda há pouco, pagã transforma-se num foco de intenso cristianismo. Próximo da actual igreja de Campo, no lugar onde a estrada nacional n.º 15 passa sobre o rio Ferreira, baptizam os novos catecúmenos.

E, ao partirem, agradecidos a Deus, deixam como padroeiro o glorioso S. Martinho. Ordenam que se levante uma igreja à qual legam relíquias do Santo Bispo, num local que hoje pertence à Quinta do Visconde Oliveira do Paço. E, assim como baptizaram o povo, também baptizam aquela terra tão acolhedora: “Para o futuro, chamar-se-á São Martinho de Vale Longo”.

Os dons especiais da ‘Pia’ prolongaram-se pelos tempos fora. Sempre que havia um longo período de seca, o povo de S. Martinho, com o seu pároco à frente, partia da igreja, em procissão de penitência, para a “serra da Pia”. Chegados lá, escoavam a cisterna que o Senhor Abade limpava com uma toalha de seda. Quando a procissão regressava, a meio da encosta, já a chuva caía abundantemente. E isto pelos tempos fora, até que, na ocasião das lutas liberais, uma certa mulher lá foi lavar uma camisa. Desde então a Pia perdeu a virtude.”

Mas, ainda na minha infância, minha mãe dizia: ‘De madrugada ouvi os comboios, o vento está à Pia, vai chover’. E chovia… As lendas têm sempre um fundo de realidade…