A Igreja e a Paz

Por Jorge Teixeira da Cunha

A Igreja tem contribuído para a paz de diversos modos. Nos seus começos, denunciou até ao martírio a idolatria belicista do Império Romano. Quando se tornou cultural e politicamente hegemónica, caiu algumas vezes na tentação de impor a paz pela força. Mais recentemente, denunciou convictamente o belicismo, ao menos pela voz incompreendida do Papa Bento XV. No Concílio Vaticano II, propôs analisar a questão da guerra “uma mentalidade nova”. É neste novo horizonte, religioso e moral mais do que político, na aceção restrita desta palavra, que devem ser situadas as exortações dos últimos papas, nomeadamente do Papa Francisco em cujo pontificado se tem assistido a um novo incremento da guerra, mesmo e sobretudo na Europa cristã, mas também em outras latitudes.

O contributo da Igreja não pode ficar apenas na parénese. Tem de ir mais longe. É com esse sentido de ir mais longe que propomos as reflexões que seguem.

O primeiro contributo para a paz é, a nosso ver, a proclamação do Evangelho de Jesus que é o reconhecimento do verdadeiro Deus. Este assunto é da maior importância, pois a justificação da guerra é sempre uma forma de idolatria. A beligerância é geralmente uma forma de crença na superioridade de uma ideia sobre outra, sendo que a considerada inferior deve ser aniquilada e combatida, juntamente com os seus defensores. Jesus iniciou-nos à fé no verdadeiro Deus, uma presença escondida e bondosa, que está acima de todas as ideias e garante a dignidade absoluta de todos os seres humanos, para lá das suas ideias e dos seus méritos. O rosto de Deus está especialmente presente no olhar das vítimas, para lá das suas ideias e das suas pertenças étnicas ou religiosas. O ser humano é de Deus, antes de qualquer outro aspeto da sua condição e pertença. É esta forma de vivência que se levanta contra todas as formas de justificação da violência contra qualquer grupo ou qualquer ser humano. A justificação da violência anda sempre envolta por um mecanismo sacrificial que foi superado na execução injusta de Jesus que morre pedindo perdão. Os cristãos não podem esquecer que a sua experiência de Deus é a experiência de Jesus, o qual sofreu a violência injusta, cruel e absurda.

É esta vivência do divino que é a fonte do princípio da convivência pacífica das nossas sociedades. Sendo de Deus e só de Deus, os seres humanos podem conviver entre si como irmãos e irmãs nas suas inesgotáveis diferenças religiosas, culturais, pessoais. Este é o caminho do reconhecimento do princípio da laicidade. Uma vez que são de Deus, os seres humanos podem conviver no Estado de direito, seja qual for a sua fé, a sua etnia, a sua história, as suas opções valorativas, as suas formas pacíficas de levar por diante as mais diversas formas de ganhar a vida e a celebrar. A laicidade quer dizer que o Estado se funda na justiça e não na religião nem em outras formas de convicção moral que não sejam dotadas de universalidade. O Estado de direito, pensado por este caminho, é o princípio da paz, quer da paz interna dos países, quer da paz internacional. Está bem de ver que este ideal de Estado está longe de ser colocado no terreno, mesmo nos nossos países de velha cristandade. Mas na maior parte das outras latitudes, está tudo ainda muito mais distante de ser conseguido.

A adjacência ao Evangelho tem, pois, de ser o princípio orientador das intervenções da Igreja em favor da paz. Não lhe falta inspiração vivencial nem terreno fértil para desenvolver uma racionalidade amiga da paz e capaz de desconstruir as razões envenenadas que levam à violência e à guerra. A inclusão dos povos na verdadeira experiência religiosa é muito mais do que proselitismo: é o princípio base de qualquer humanismo, desse que o nosso mundo de hoje necessita em tantas vertentes da vida. Mas o desenvolvimento de uma racionalidade aberta, capaz de desmascarar os mecanismos da sacralização da violência, é também uma tarefa da comunidade cristã. Assim as escolas da Igreja e as suas universidades possam inscrever-se neste programa de ampliação da racionalidade, de forma desinteressada e lúcida. E depois de fazer tudo o que nos compete para evitar a violência há o pedido insistente para sermos livres do mal.