Por Jorge Teixeira da Cunha
Nos dias que correm não há apenas notícias de guerra. Por vezes, somos surpreendidos por acontecimentos felizes, como foi a notícia do Nobel da Literatura atribuído ao escritor Jon Fosse. Este norueguês, nascido em 1959, é autor de uma obra que vale a pena frequentar, havendo já alguns títulos vertidos para a nossa língua, como uma “Trilogia” de contos e alguns volumes da sua obra romanesca mais significativa que leva o nome de “Septologia”. Mas não é só como autor de romances, de poemas e de peças de teatro que ele nos interessa. É como crente cristão católico.
Como ele conta a Cecilie Steiness, em 2019, o encontro coma fé cristã aconteceu-lhe no verão de 2012. Ele vinha de um tempo de intensa produção e também de uma dependência severa de bebidas alcoólicas e foi por essa altura que lhe aconteceu “mudar o rumo do seu barco”. Aproximou-se da Igreja católica, recebeu o baptismo e celebrou o casamento com a sua esposa Ana. Mas o processo de conversão vinha de longe. Os factores que o levaram à fé são muito interessantes e mostram as virtualidades do melhor do pensamento fenomenológico para o encontro com a graça divina e a celebração da fé.
O primeiro aspecto que o levou ao encontro com o mistério divino foi precisamente a escrita literária. Segundo conta, o acto de escrever sempre se lhe apresentou como algo que não cabia nas explicações comuns, como as das ciências que tratam do funcionamento do cérebro humano. A coisa vinha de mais longe. É no centro da experiência de criação artística que se encontrou com aquilo que chamamos a graça divina. A análise da acção humana, em todas as suas vertentes, se for interrogada como profundidade e com honestidade intelectual, não pode ser compreendida em definitivo que não seja como operação humana, certamente, mas também como cooperação e doação de um actor misterioso que tanto podemos chamar Vida, como podemos chamar Deus. É a experiência desta cooperação que Jon Fosse confessa como uma interrogação que levou a aproximar-se da fé religiosa. Mas o terreno tinha sido preparado também pelos seus estudos universitários.
Ele conta que frequentou os caminhos do pensamento de M. Heidegger e com ele o pensamento fenomenológico. Não de estranhar que assim tenha acontecido. De facto, os caminhos da filosofia europeia do séc. XX, onde avulta esta corrente muito diversificada que chamamos fenomenologia, possui virtualidades muito interessantes para o encontro com o divino e com a fé explícita que são, a nosso ver, muito mais fecundos do que os caminhos do pensamento escolástico em que a filosofia era vista como servidora de uma teologia, um tanto seca e preocupada com a instituição eclesiástica, que olhava mais para si mesmo do que para o mistério que a precede. Ora o pensamento filosófico fez um caminho de analítica do sujeito humano que, nos seus melhores momentos, leva às portas do mistério divino. Foi o que parece ter acontecido com este escritor.
Mas houve ainda outro encontro decisivo para este homem. Foi o encontro com a mística cristã, nomeadamente com Mestre Eckhart, o conhecido expoente do renascimento espiritual dos alvores da modernidade. A influência deste personagem não pára de surpreender. A vivência intensa do seu frente a frente com Deus tem servido de inspiração para muitos e as suas palavras inspiradas continuam a abrir o caminho da fé, mais do que os conceitos tantas vezes secos da nossa pregação e da nossa catequese.
Quem frequenta as obras de Jon Fosse, sobretudo as do último decénio, não pode deixar de encontrar ressonâncias bíblicas evidentes. A configuração das personagens dos seus contos assenta numa descida ao essencial da experiência subjectiva, desconstruída em relação às vivências inautênticas da cultura massificada e mostra o sujeito recebendo-se dos encontros criadores, capaz e poderoso para o amor e para cuidar de si e dos outros viventes. Mais ao fundo, está sempre o actor divino misteriosamente sentido nas noites de escuta e nos dias de trabalho e cuidado.