Notas sobre a arquitectura do quadrado

Por M. Correia Fernandes

Lembro que nas primeira viagens realizadas através dos barcos turísticos que passaram a subir o Douro após a instalação e a funcionalidade das barragens, permitindo através das comportas edificadas em Crestuma-Lever, no Carrapatelo e até chegar à Régua, uma das sensações que nos ficavam da observação das margens do rio de vinho quem tem a foz em Liverpool, em Londres, em Nova Iorque ou em Buenos Aires (no dizer poético de Joaquim Namorado), no meio da variedade das suas povoações e das suas paisagens era esta: os edifícios antigos e tradicionais apareciam integrados na paisagem de uma forma equilibrada, que valorizava tanto os edifícios como a paisagem. Iniciava-se entretanto o aparecimento de novas construções, e a sensação que nos ficava era estranha: que os novos edifícios surgiam como realidades espúrias, distorciam a paisagem, e apareciam como construções vindas de um outro mundo.

Esta sensação de que os edifícios antigos se enquadravam criativamente na paisagem tinha a raiz simpática e popular de uma arquitectura nascida da simplicidade e da tradição. Os autores não eram célebres criadores, mas gente que inseria e retirava da cultura tradicional a sua imaginação criativa. Muitos dos edifícios, mesmo os modestos, mostravam uma criatividade arquitectónica em que a expressividade da simplicidade constituía por si mesma uma mensagem.

Veio depois, após o fenómeno da emigração europeia dos anos 60 do século XX, um hábito de construção que consistia em imitar a arquitectura dos países europeus do norte da Europa, onde era mais abundante e mais frequente a chuva ou a neve, e por isso os telhados deviam possuir um elevado índice de inclinação funcional, para que quer a chuva quer a neve deslizassem mais rapidamente para o solo, evitando ou disfarçando os perigos de inundações. No dizer censório do tempo entre nós, eram as “casas do estilo maison”, que se foram plantando em paisagens tradicionais do país.

Nos tempos mais recentes verificamos outro fenómeno, talvez fundamentado nas transformações climáticas, e que se caracteriza pelo modelo do edifício de linhas quadradas, onde não impera muito a imaginação criadora, mas apenas, eventualmente, alguma funcionalidade de organização dos espaços. As linhas rectas poderão ajudar a construir espaços mais adequados para o estilo de vida hodierno. Mas certamente possuem outras características não tão úteis, e mais prosaicas, como podem ser a monotonia e a falta de imaginação criativa.

Uma recente publicação sobre imobiliário (1) assinalava nos diversos projetos apresentados “a simbiose perfeita entre casa, trabalho e lazer”, e “o requinte e o bem-estar” de um novo condomínio que assegurava “a forte energia citadina, suavizada pela calma e leveza do rio Douro” bem como o projeto de “soluções para criar espaços híbridos em casa”, associando permanência, trabalho, decoração e mesmo espaços arborizados. O acesso às tecnologias modernas permitirá criar “uma casa inteligente e conectada”, orientada para “moldar o futuro da vida doméstica”.

As imagens apresentadas ou propostas mostravam formas tradicionais, ao lado de modelos marcados pelo estilo da construção em linhas inspiradas no universo rectilíneo. Quase não há janelas visíveis, haverá talvez as esperadas janelas do invisível.

Deste universo, a impressão nascida apenas de aproximação da nossa sensibilidade, fica-nos a sensação não apenas de uma certa perda de tradição, mas de alguma agressão pelo excesso das linhas retas, que não casam nem com as casas tradicionais, na sua simplicidade ou sugestão harmoniosa, nem com o universo florestal que as envolve. Deve haver alguma razão para que as árvores mantenham as suas formas esguias ou arredondadas e que os arbustos se encostem serenamente na relva campestre. Parece que as casas quadradas disso se esqueceram.

Agora as formas rectilíneas parecem saber-nos na paisagem a algo estranho e espúrio, como se colocássemos uma caixa de sapatos no meio de um campo de milho ou de trigo: aquilo parece pertencer a outro planeta. Mas como nos dias que correm também nos dizem que os anéis de Saturno podem ter nascido do embate de duas luas geladas, talvez as casas quadradas no meio das paisagens tradicionais na sombra das encostas poderão um dia tornar-se um fenómeno observável digno de estudo…