Por M. Correia Fernandes
Pediram-me que fizesse alguma referência ao conceito e à realidade da chamada Inteligência Artificial. Confessei por um lado o insuficiente conhecimento do fenómeno, e por outro a complexidade do conceito e do conteúdo temático que encerra.
A primeira reação de quem vai saindo do universo da inteligência natural para outro universo marcado pela ingente complexidade tecnológica é a de qualquer pessoa que do mundo intelectual, racional, do pensamento, das sensações (que tanto inquietaram escritores, pensadores, artistas e homens de cultura vária) é a convicção de que a chamada inteligência artificial é uma realidade que é artificial mas que não é inteligência. O elemento artificial induziu a assimilação ao elemento humano inteligência, por comparação, não tanto da realidade mas dos efeitos práticos. A associação dos dois conceitos surge porque a criação e os domínios da tecnologia começaram a sentir-se cómodos junto do universo da inteligência, porque os conceitos, os dados e os efeitos desta seriam boa companhia e oportuna sugestão para uma nova realidade emergente.
Importaria primeiro verificarmos o conceito de inteligência. Os dicionários assinalam definições como o conjunto o universo de todas as capacidades humanas, que se desenvolvem no juízo, na imaginação, na memória, no raciocínio, na abstração, na concepção de novas ideias. No entanto, tradicionalmente se consideram várias fórmulas da inteligência, como a inteligência dedutiva, a inteligência emocional, a inteligência científica e mesmo a inteligência artística. Todas as fórmulas se poderiam inserir nos universos analítico, criativo e prático.
Conceitos
Ora o conceito de inteligência, com o adjetivo artificial associado, parece situar-se mais no campo do conhecimento e do domínio tecnológico e das suas linhas de desenvolvimento. Se formos à pesquisa das definições de inteligência artificial, podemos encontrar caminhos diversos ou diversamente apresentados.
Uma descrição (mais que definição) proposta pelos serviços do Parlamente Europeu apresenta estas dimensões: “A inteligência artificial (IA) é a capacidade de uma máquina para reproduzir competências semelhantes às humanas como é o caso do raciocínio, a aprendizagem, o planeamento e a criatividade. A IA permite que os sistemas técnicos percebam o ambiente que os rodeia, lidem com o que percebem e resolvam problemas, agindo no sentido de alcançar um objetivo específico”.
Claro que o suporte desta forma de inteligência é o instrumento informático: “O computador recebe dados (já preparados ou recolhidos através dos seus próprios sensores, por exemplo, com o uso de uma câmara), processa-os e responde, sendo que os sistemas elaborados poderão ser capazes de adaptar comportamentos através de uma análise de ações anteriores através de um trabalho autónomo”. (Pode consultar-se a definição em europarl.europa.eu).
Depois as deduções sucedem-se: que a inteligência artificial vai mudar o mundo; que vai favorecer novas profissões e destruir profissões tradicionais; que levará à descoberta de campos de ação ou de transformação tecnológica e comportamental, que muitas tarefas poderão ser assumidas pelas formas de inteligência artificial.
O desenvolvimento das capacidades das máquinas eletrónicas foi permitindo que muitas tarefas de construção da inteligência humana pudessem ir sendo substituídas pelas mesmas tarefas executadas pela máquina, através de adequada programação. A comparação com as criações pela máquina de fórmulas da inteligência humana conduziu a que estas acabassem também por ser consideradas como inteligência. No entanto esta suposta ou designada “inteligência” das máquinas desenvolve-se por processos muito diferentes da inteligência humana.
Assim, as técnicas da inteligência artificial situam-se nos campos ou domínios do encontrar soluções concretas para problemas concretos e não nos domínios intelectuais do entendimento, da valorização, da interpretação. Situam-se antes nos domínios do relacionar e interpretar relações, semelhanças, processos conducentes a novos dados, que induzem a possibilidade de realização de funções sem a direta intervenção humana.
Desta forma, o processamento de dados funda-se na atualização de relações, por semelhança, contraste, oposição, contraponto de dados, semelhança de situações e outros processos de relacionamento computacional. Tudo isto poderá acontecer através de uma ação na qual já nem pensamos nos dias que correm: implica que os novos dados nasçam de uma programação prévia ou dela retiram novas sugestões ou semelhanças, ou contrastes. Será uma tentativa de imitar a inteligência humana, de uma forma mais rápida, de maior número de relacionamentos e maior rapidez de realização.
Nascida no século XX, foi sucessivamente desenvolvida através do aperfeiçoamento das máquinas computacionais, que começaram a ser usados para realizar tarefas como deteção de objetos, de imagens e de sons, ou a tentativa de encontro de novas fórmulas de identificação dos modelos cerebrais. Daqui lhe terá vindo a designação de “inteligência”.
Os caminhos e os processos de valorização da inteligência artificial conduziram a diversas subdivisões de orientação para a economia, a indústria, a criação de novos objetos para as utilidades quotidianas ou novas atividades que vão sendo sugeridas, como os veículos não tripulados, o próprio Direito e suas implicações, a área da saúde e dos medicamentos, mesmo a chamada “realidade virtual” ou a previsão de acontecimentos ou transformações.
Novos domínios
Neste sentido, a inteligência artificial é já uma óbvia realidade. A grande dúvida e a grande inquietação nascem da imaginação dos resultados, esperados ou inesperados, a que o seu exercício pode conduzir. Entre eles, por exemplo, a eliminação de empregos ou a criação de novos empregos, a integração de processos de mudança. Ou, a outro nível, o domínio de situações comportamentais, de movimentos individuais ou coletivos, de ingerência na privacidade pessoal e no controlo da liberdade das pessoas.
E há outro domínio essencial, mas parece que não considerado essencial: a introdução e a práticas de valores éticos e morais e a defesa do sentido da dignidade humana no meio do mundo das máquinas… As máquinas não usam a ética, mas as pessoas que as fabricam devem fazê-lo, e a ética é mais que um conjunto de regras, mas é uma atitude da criação humana.
Outros valores como a defesa da privacidade ou intimidade de cada pessoa, a segurança do indivíduo e das organizações cívicas e a defesa da dignidade da condição humana devem constituir pontos de reflexão por quantos trabalham hoje e amanhã estes domínios do conhecimento. Porque a inteligência artificial é também um domínio do conhecimento e da vida das pessoas.
Neste campo entra a imaginação. É sabido como hoje nos informam dos pormenores do tempo ou da previsão de acontecimentos. Que outros dados encontraremos amanhã?
Há entretanto outros domínios que, que o uso e o desenvolvimento da inteligência artificial devem preocupar a sociedade: a manipulação genética, as intervenções neurológicas, as fórmulas comportamentais, que acabarão por ser condicionadas pelo exercício das técnicas de manipulação.
Importa que a legislação das sociedades esteja atenta aos diversos níveis de desenvolvimento e de criação “artificial”, para que a artificialidade não conduza à desumanização. Será esta a maior preocupação que a sociedade sente quando teme a inteligência artificial?…