Uma leitura do filme “Mistério em Veneza” *
Por Alexandre Freire Duarte
Poirot é famoso, mas, com “Mistério em Veneza”, o diretor deste filme dá mais um passo para um igual renome. A obra é uma mistura de recorte detectivesco introvertido e sinistro com um travo a horror gótico extrovertido. Somando isto a pulsares de humor estranhamente contemplativos, uma tensa e mágica direção floresce num pântano de pequenas excentricidades e de um vigor que vai esmorecendo até um final menos feliz.
Branagh como Poirot é fascinante, desde a sua solidão autoimposta ao co(m)viver, às vezes de forma pedante, com todas as demais personagens a decantarem desilusão, ambição, crueldade e cinismo – mas todas elas cheias de dor por debaixo disso. Se as personagens principais se juntam num puzzle regular, as demais são descartadas com uma ligeireza que, mesmo num filme de mistério, estranha ante os seus perfis borderline. Perfis estes, porém, bem ajustados às múltiplas técnicas claustrofóbicas de filmagem, as quais, unidas à música, comunicam a perceção de um ténue cintilar numas trevas irreais.
Pode não parecer, mas, mesmo sem spoilers, todo o filme já está exposto nos dois parágrafos anteriores e, como teólogo, é um fasto repasto. Desde a verificação de que o dinheiro move mundos, até às grandes questões relacionadas com a vida depois da morte, passando pelos traumas que são utilizados por charlatões para espoliarem as suas vítimas em nome de promessas de “revelações” que, neste filme, apontam para uma ambígua esperança. Uma ambiguidade própria dos indiferentes que recusam a aventura do amor.
Com isto apontado, creio que o tema da “fé” – não apenas a teologal, mas a que pode ter como “meta” uma qualquer realidade – está no centro de “Mistério em Veneza”. Quando alguém deixa de se apoiar em Deus, não abdica de buscar apoios, antes passa a se apoiar em tudo o que lhe jure alguma segurança. Não o censuremos: é nessa inquietude que as lágrimas humanas podem trazer consigo um Jesus que as conhece intimamente, conquanto se as viva com os olhos abertos para o real e não para o falso.
Sob as nossas máscaras protetoras, todos nós, tal como ocorre com Poirot, buscamos uma justiça – que deveria ser a do Reinado do Deus-Amor e não a dos seres humanos severos e fingidos. Ocorre que vivemos num Mundo parecido ao deste filme: cansado, tristemente apático e numa ligeireza que alimenta uma morte que trava a vida. Todavia, ainda há esperança, mas apenas se não se idolatrizar, por um lado, o dinheiro supostamente salvífico e, por outro lado, a si mesmo. Esperança existente, portanto, em quem se faz uma disponibilidade infinita que, com um sorriso terno, derrete o desamor.
Se assim é, do caos pode vir novamente a ordem; dos charcos mortais, a luz clara do amor que mostra que nesta Terra tudo o que é bom não é senão um aperitivo de um Mundo Novo em que entraremos nus, pois só a nudez é a verdade e esta é uma totalidade sem a qual o amor é mentiroso. Um amor que mantém unido quem está vivo e quem está Vivíssimo em Deus, e que, com a licença d’Este, se nos pode dar a percecionar de variados modos. Nunca a Igreja se declarou apoditicamente sobre isto, mas a Bíblia sim: não o queiramos, mas aceitemo-lo em oração se ocorrer, apartando-nos de tudo o que, segundo Inácio de Loyola, provém do “anjo mau” que nos carcome e impede de amar.
(* EUA, Reino Unido, Itália; 2023; dirigido por Kenneth Branagh; com Kenneth Branagh, Michelle Yeoh, Jamie Dornan, Camille Cottin, Tina Fey, Kelly Reilly e Jude Hill)