Uma ética da procriação em contexto tecnológico

Por Jorge Teixeira da Cunha

A procriação tem sido tema recente de discussão por diversos motivos, nem todos pacíficos. Se é verdade que as ajudas médicas resolvem a incapacidade de muitos casais para cumprir a sua vocação procriativa, também é verdade que alguns outros caminhos da tecnologia, neste campo, rondam a fronteira do delírio. Entre os assuntos que podem ser colocados neste segundo contexto podemos enumerar a tentativa de legitimar juridicamente o uso de embriões humanos para produção de material terapêutico, a inseminação com gâmetas conservados e usados depois da morte dos progenitores, a maternidade de substituição em contexto arbitrário e mesmo a inseminação de mulheres sós que se fazem engravidar com ajuda médica com sémen de um dador desconhecido. Algumas destas opções vão fazendo o seu caminho por iniciativa de minorias aguerridas que culpavelmente vão abusando da confiança das nossas sociedades pouco preocupadas com estes temas e pouco advertidas para assuntos morais e jurídicos. A própria Igreja se tem deixado embalar com problemas internos que minam a sua capacidade de intervenção e a lucidez para abrir caminhos de anúncio de um autêntico humanismo e de denúncia das formas de uso da técnica que são disformes com esse horizonte indispensável para agir bem.

O principal caminho para delinear um contexto ético para as técnicas de ajuda à procriação é antropológico. Trata-se de iluminar com lucidez o sentido da transmissão da vida humana. Nos seus bons tempos de teólogo, Joseph Ratzinger propôs uma distinção que continua a fazer todo o sentido. Trata-se de mostrar como reprodução e procriação são duas realidades que necessitam de ser distinguidas cuidadosamente. A reprodução é a replicação dos indivíduos no contexto básico da sucessão animal das gerações. Por sua vez, a procriação é o contexto humano propriamente dito da transmissão da vida. Enquanto no primeiro caso, a vida segue o seu caminho de multiplicação dos indivíduos e é permeável à manipulação técnica, dentro dos limites de uma gestão responsável dos animais pelos humanos, no segundo contexto a realidade é muito diferente. A procriação é a palavra que refere o contexto ético em que os humanos desempenham a sua missão de transmissão da vida. Aqui abre-se um largo campo de reflexão antropológica indispensável ao desempenho da tarefa de respeitar a vida no contexto tecnológico que é o nosso. Na sua linguagem, o então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé advertia para o facto de ao mecanismo biológico pelo qual a vida de transmite a vida estar subjacente a génese da pessoa humana com a sua dignidade e seu mistério indisponível e não manipulável.

Noutra linguagem, podemos dizer que a transmissão da vida em contexto ético é uma acção situada no âmbito moral propriamente dito o que exclui a sua redução a um contexto de eficácia pura e simples, como é aquele em que a tecnologia é usada para multiplicar os indivíduos sem ter em conta o contexto subjectivo da vida, a sua inclusão numa relação de amor de benevolência dos progenitores entre si e de desvelo e cuidado com o novo ser que vem a este mundo.

Desta breve exposição decorrem algumas fronteiras que, aos olhos de uma moral cristã, não são objecto de negociação. A primeira delas é a proibição total da manipulação dos embriões humanos, a não ser em seu próprio benefício. Por isso, os embriões não podem ser usados como material biológico para qualquer finalidade supostamente superior. Eles existem apenas e só para serem implantados e feitos desenvolver no seio materno. A segunda exigência é que o nascituro seja respeitado na sua indisponibilidade, privacidade, e venha ao mundo no contexto da espera amorosa e da vivência dos seus progenitores. Por isso, todas as formas de procriar que tenham como ponto focal o desejo ou o capricho de um ser humano fora do amor paterno ou materno não tem sentido ético.

A tecnologia é uma forma de a vida se melhorar e de se engrandecer. Quando a tecnologia se isola do contexto ético, ela torna-se uma ameaça real para um provir da vida sensata e apaixonadamente experienciada pelos seres humanos. À luz da vida a que Cristo nos iniciou, não podemos deixar que isso aconteça.