
Uma leitura do filme “Luther: O Cair da Noite” *
Por Alexandre Freire Duarte
“Luther; my name is John Luther”. Esta obra, que tão tarde vi, parece em tudo um filme de James Bond. Sem a panache e o glamour pessoal (e de cenários) de Bond, mas com tudo o resto. É pena, mas vale a pena ser visto, mesmo no meio de alguma violência escusada. Tudo neste filme de ação é um “jogo do gato e do rato”, entre Elba e Serkis, com personagens secundárias que dão tudo para se manterem ao nível daqueles. Mas eles estão a outro nível e, assim, esse tudo não basta, por mais que seja secundado por tiradas buriladas e locais sombrios e sujos de uma Londres depressiva, encrustada e gótica.
Elba, como polícia, mergulha nos pântanos morais da sua dura e brutal personagem, cheio de uma áspera e temperamental suavidade assombrada e melancólica que em nada destoa da sua fina acuidade psicológica. Serkis é tão burlesco como arrepiante no seu papel de um complexo terrorista psicopata que destila incerteza sempre que aparece. A trama, essa, é linear, subdesenvolvida e calculável, mas, também e ultimamente, estranhamente adequada, sobretudo na sua estética, tonalidade e cinismo.
Complicando o que no filme aparece como muito simples, ao ponto de não ser senão tangencialmente tocado, parece-me que, como teólogo, esta obra relembra-nos que a ideia de podermos ser anónimos é irreal. Já não é o imaginariamente malévolo deus que tudo vê para nos acusar dos nossos pecadilhos – esse que levou Sartre a recusá-lo em criança –, mas a Internet, que de um instrumento neutro se pode rapidamente transformar numa realidade deveras perigosa. Não só quando a usamos de um modo que nos afasta de Deus, dos demais e da nossa verdade, mas, agora e mormente, quando entra pela nossa privacidade (individual e familiar) adentro. E o pior é que aquiescemos a essa maldade de um mundo “na nuvem”, já quase omnipresente e a querer ser omnisciente.
Daqui resulta o perigo das nossas grandes transgressões morais servirem de fulcro para chantagens. E quantos de nós será que prefeririam morrer a saber que os demais conhecem quem somos de verdade, por detrás das nossas fachadas visíveis? Temos vergonha dos demais, mas deixámos de nos preocupar com as feridas que infligimos a Deus? Eis o mundo em que vivemos. Aquele no qual se foi invertendo, lentamente e com a nossa complacência, as nossas escalas de valores, de hábitos e de prioridades. Antes não morra o nosso “ego” de vergonha a morrermos de amor; antes não vejam as marcas serpentinas que entram e saem do nosso coração, a matarmos as serpentes que nele albergamos; antes suportar os nossos instintos, a cristificarmos as suas origens.
Como acontece com a figura de Luther, parece cada vez mais que, como cristãos, precisamos de torcer as regras iníquas que nos são impostas para nos fazerem pertencer à alcateia global. Mais: e torcermo-las empenhando tudo o que somos em Cristo, talvez até nos sacrificarmos, no altar do amor, nesse processo para bem dos demais. Esses demais que, depois e porque a nossa ajuda lhes ostenta o que (existente de noturno neles) gostariam de ocultar, nos podem acusar, processar, “cancelar” e denunciar, quando apenas queríamos erguer o Sol no nosso amor para com eles. Isso não nas dará a paz “segundo o mundo”, mas desprender-nos-á do nosso “ego” e nos fará livres, ao nível do espírito amante, com efeitos para o futuro e, também e misteriosamente, para o passado.
(* Reino Unido, EUA, 2023; dirigido por Jamie Payne; com Idris Elba, Cynthia Erivo, Andy Serkis e Dermot Crowley)