
Por M. Correia Fernandes
Numa mensagem divulgada pela Santa Sé, o Papa Francisco dirige-se aos jovens que participaram ou seguiram a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa, formulando a questão: “ainda se lembram da Jornada?”. Perante o sim, assinala-lhes que a recordação não deve ser como coisa que se guarda numa embalagem ou num álbum de fotos, mas deve ser contada: “contem na Universidade, contem na escola, contem no trabalho, sejam missionários”. “É uma recordação viva e vocês têm que a manter viva. E a forma de manter uma coisa viva é comunicá-la aos outros”.
Depois da reflexão proposta neste local por Jorge Cunha no número anterior sobre e Jornada (o silêncio, a cura a ação), importa agora salientar a mensagem de Francisco: ela coloca o tema no seu justo ponto de referência, o anúncio. A expressão “sejam missionários” antecipa já também a celebração do Dia Mundial das Missões, a ser lembrado em toda a Igreja no domingo 22 de outubro.
A capacidade do Papa Francisco de traduzir para o quotidiano a força dos grandes ensinamentos e dos grandes acontecimentos constitui uma das suas características evangelizadoras mais atuais: que os princípios teológicos e doutrinários não se fiquem apenas pelos belos textos ou pelos grandes acontecimentos: eles devem ser traduzidos na prática quotidiana, na prática, formativa e na prática profissional.
Esta linha de pensamento e de ação vem na esteira de dois caminhos: um que é lembrado por Bento XVI, ao recordara mensagem de S. Bento que toda a ação se deve traduzir na oração e na celebração: sem celebração não há vivência. (Bento XVI, O que é o cristianismo, ed. Lucerna). Outro, que é o caminho da tradução dos princípios em gestos concretos de civilização e de cultura humana.
Seja-me permitido lembrar um escrito já aqui publicado, sobre os valores e as raízes cristãs da civilização atual. As raízes dos grandes valores culturais do mundo ocidental, que devem continuar a ser luz para o mundo, devem buscar-se na Europa: aqui se encontram as raízes e os caules de muitas folhagens e frutos que noutros lados florescem. Devemos orgulhar-nos por isso, mesmo que muitos frutos nem sempre sejam conformes à árvore que os engendrou. Entre os valores civilizacionais da Europa encontra-se a matriz cristã, que deveria constituir a referência essencial de uma consciência coletiva estruturalmente humana.
Nos nossos dias perdeu-se um pouco a lembrança dos heróis, que deveriam tornar-se essa “referência essencial da consciência coletiva”, mesmo por entre toda a espécie de gangas civilizacionais que pululam por aí.
Mas no nosso mundo de hoje há também homens e mulheres que nos interrogam sobre o sentido último da nossa condição humana. Temos a tendência superficial e malsã de confundir (aí está de novo a propaganda) um herói da sociedade com uma estrela mediática ou um ídolo. Ainda somos do tempo da predominância das “Stars” promovidas pelo cinema. Hoje as estrelas são as do mundo do desporto e do mundo da moda. Por isso são essencialmente efémeras. Esse carácter efémero do ídolo de hoje é um dos preocupantes sintomas da perda dos ideais da nossa civilização: substituímos o passageiro, o efémero, o vácuo pelo que deveria ser a raiz mais funda das nossas convicções mais sólidas.
A raiz de todo o heroísmo deve situar-se na trilogia humanista da “liberdade, igualdade, fraternidade”, a trilogia cristã que quando foi mal aplicada conduziu à violência e à barbárie. Por isso há quem proponha um “heroísmo democrático”, a saber, o que se coloca ao serviço da pessoa humana, da sua promoção espiritual, cultural, social. As práticas governamentais e as modas sociais devem honrar os seus heróis. O drama é o de saber como os escolher: os sábios, os pensadores, os benfeitores da humanidade pelo seu esforço, pensamento ou ação, pela sua força de criatividade, ou apenas pela fama passageira? Temos exemplos dos dois modelos. O mal é que se confundam. O grande herói tem de ser o que exercita o sentido mais fraterno da vida. Ou seja, o valor sublime da caridade cristã.
A grande linha de rumo que a Europa deve traçar para o mundo, a sua dinâmica civilizacional, em qualquer dos continentes deve ser a de semear o ideal definitivo do sentido espiritual da existência humana, contraposto ao culto do materialismo; do valor do serviço, contraposto ao do interesse e da busca do poder e do domínio; do valor da solidariedade social contraposto à acumulação de riqueza; do valor da justiça social contraposto ao exibicionismo dos poderosos.
É neste sentido que os valores da civilização europeia se podem tornar modelares para o mundo.