De novo a Laicidade, o laicismo e os seus usos

Por M. Correia Fernandes

A propósito da realização da Jornada Mundial da Juventude e dos seus envolvimentos (que sempre os há, muitos e díspares, equilibrados e distorcidos), veio outra vez à comunicação social a questão da laicidade, e por acoplamento a ligação ao conceito de laicismo.

Convinha pensarmos que a definição de laico e de laicidade, e ainda mais a de laicismo, situam-se no universo da negatividade: o que não é religioso, ou o que não se orienta pelos conceitos da ligação tradicional com os princípios religiosos e particularmente com os princípios cristãos. Nesta ordem de ideias, a laicidade não se define como uma proposta positiva, mas como uma proposta negativa:  não o que é, mas o que não é. Estado laico seria assim o que não é Estado religioso. A passagem subsequente do não religioso ao anti-religioso surge  como uma espécie de consequência natural, passando da laicidade (universo do que é laico) ao laicismo (universo que assume o laico como regra ou norma ou prática).

Se consultarmos os dicionários, encontramos definições de laicismo como qualidade ou condição do que é laico, do que é independente de qualquer confissão religiosa; princípio que determina o carácter não confessional das instituições públicas. Por exemplo, o conhecido Dicionário Houaiss define laico como “aquele que é hostil à influência da Igreja e do clero sobre a vida intelectual e sobre as instituições e serviços públicos”.

Se buscarmos a origem etimológica das palavras, vemos que laico provém da forma “laikós”, a partir do clássico grego “Laos”, que traduz o conceito social de povo, com contraposição aos conceitos de nobreza ou mesmo de clero.

Manuel Antunes define “laicismo” como “Ideologia (de matriz positivista, idealista ou materialista, segundo os casos) que tende a confinar o religioso e o sagrado à esfera do rigorosamente particular, exaltando no domínio público o secular e o profano com os seus valores próprios, a sua moral, a sua metafísica e mesmo o seu ideal  e a sua fé”. Salienta por outro lado que o vocábulo tem origem cristã, designando o conjunto daqueles que, na comunidade do povo de Deus não possuíam funções ministeriais ou sacras (Cf. artigo “laicismo”, na Enciclopédia Verbo)

Poderá então dizer-se que a afirmação da laicidade como imposição cultural à sociedade constitui uma negação das próprias Leis da liberdade religiosa: estas respeitam sempre as religiões e os sentidos do universo religioso, com compreensão e tolerância mútua. Quando ouvimos falar de laicidade (e por maior força de laicismo) ficamos com a ideia de uma imposição universal à sociedade de não se poder aceitar o religioso. Haveria por isso que estabelecer relações de influência e compreensão de conceitos como anticlericalismo, ateísmo, secularismo e tolerância religiosa.

Ora o ser laico não é uma característica das pessoas, nem da sociedade, mas apenas uma regra institucional. Uma sociedade laica é aquela que aceita todas as formas de expressão do pensamento e das convicções culturais e religiosas, sempre no respeito pelos princípios da justiça, da solidariedade, da compreensão e do relacionamento mútuo. O querer impor o laicismo equivale à tentativa de introduzir uma espécie de domínio dos seus conceitos e práticas sobre a sociedade. Impor o laicismo é uma disfarçada forma de violência social. É o transformar um universo de negatividade em universo de imposição.

Uma justa compreensão da laicidade deve ser portanto a de acolher na sociedade (tanto nas leis como na prática social e cultural) todas as formas de expressão do pensamento e da ação que correspondam a um espírito humano justo e equilibrado, incluindo o respeito ela prática religiosa dos cidadãos (expressa entre nós pela lei da liberdade religiosa).

Quando se ouviu dizer que era necessário anular a concordata entre Portugal e a Santa Sé, aprovada em 2004, esta atitude resulta de uma intenção persecutória em relação ao universo religioso que, como se sabe dos próprio censos, é notavelmente maioritário em Portugal. Com efeito, se na década 2011-2021, se o número de católicos em Portugal passou de 88,3%, para 80,2%, e se mais pessoas se declararam sem religião, importa realçar que outras confissões religiosas se afirmaram mais e que a taxa de resposta, embora facultativa, se firmou em 97%, o que traduz o interesse pelo facto religioso entre os cidadãos. Importa por isso salientar que um Estado laico deve ter por intenção e missão respeitar todo o universo religioso, e todas as confissões religiosas.

Amadeu Gomes de Araújo, em recente publicação (“Um erro de Afonso Costa”), assinala que o mal da primeira República em Portugal foi justamente assumir o combate pela laicidade como projeto governamental, através das chamadas “Missões Laicas (1913-1926)”, um exemplo paradigmático do diferendo entre Estado e Igreja durante a I República, ao pretender converter as Missões religiosas do Padroado português em Missões civilizadoras laicas.

Em contraposição às “missões laicas” podem encontrar-se as longas referências à atividade missionária do Bispo D. António Barroso, e a sua dimensão civilizacional, na edição da Voz Portucalense “D. António Barroso: memória e pensamento”, com coordenação de Amadeu Gomes de Araújo.

A predominância atual do domínio da informação pelas empresas tecnológicas ou pelas redes sociais parece induzir na sociedade esta nova dimensão do combate pela laicidade, entendida como uma espécie de linha civilizacional visando contribuir para uma intenção de eliminação do fenómeno religioso na sociedade.

Seria uma espécie de ação de substituição cultural, assente na destruição da cultura e da história dos povos e nações. Nenhum povo viveu historicamente asem religião.