
Por M. Correia Fernandes
A editora da Universidade Católica, designada UCPEditora acaba de publicar em língua portuguesa (maio de 2023) o volume intitulado Economia de Francisco: um glossário para reparar a linguagem da Economia, tradução de Artur Morão para a edição em 2022 do volume organizado por Stefano Rozzoni e Plínio Limata The Economy of Francesco: un glossario per riparare il linguaggio dell’economia.
O próprio título revela duas intenções: a de recorrer às propostas formuladas pelo papa Francisco nos seus diversos escritos (encíclicas, como Laudato Sì e Fratelli Tutti, mas também outras mensagens como as exortações apostólicas que traduzem dimensões de reflexão sobre as diversos realidades da condição humana); e a de elaborar as ideias de Francisco em torno de um conjunto de temas aglutinadores do essencial da suas propostas. Este glossário está elaborado em torno de conceitos centrais da linguagem utilizada nos tratados de economia bem como na linguagem técnica e jornalística sobre estas matérias, tais como riqueza, ambiente, trabalho, inovação, pobreza, lucro, propriedade, sustentabilidade.
Os conceitos objeto de reflexão figuram através de paradigmas diferenciados. 1- O paradigma do olhar bíblico e evangélico, nas dimensões fundamentais e ético/morais, tais como ágape, comunidade, igualdade/desigualdade, confiança, justiça, fraternidade, pessoa, relação, riqueza/pobreza, responsabilidade, valor ou vocação; 2 – O paradigma estritamente económico, em conceitos tais como capitalismo, finança, empreendedorismo, trabalho, lucro, propriedade, sustentabilidade, tecnologia; 3 – O paradigma das características ambientais e de desenvolvimento, tais como ambiente, inclusividade, mutualidade, responsabilidade, recursos, valor… No total, apresentam-se 33 termos do glossário, que apresentam as análises e reflexões dos diversos especialistas.
Economia de Francisco
O conceito “Economia de Francisco” terá certamente origem nos documentos publicados a partir da encíclica Laudato Sì (2015), nomeadamente nas propostas de um relacionamento e diálogo entre o meio ambiente, a ecologia e a política internacional, e na formulação “Política e economia em diálogo para a plenitude humana” (n.189 e seg.). No entanto a ideia mais próxima nasce de um projeto de um “movimento internacional de jovens economistas, empreendedores e change makers de todo o mundo num processo de diálogo inclusivo e de mudança global jovem e vibrante para uma nova economia” (p.21). E a ideia nasce também da sugestão buscada no próprio Francisco de Assis de “reparar a minha casa”, lembrando os autores que a palavra e a noção de economia tem nas suas raízes a noção de “oikos”, a casa comum.
Salienta o prefácio dos organizadores que este livro, nos seus conceitos técnicos e na sua linguagem, “está pensado para um público amplo e não apenas para especialistas das ciências económicas” (p.27).
Convém, no entanto, lembrar que os problemas e propostas de uma economia baseada nos conceitos de bem comum, de justiça social, da orientação das forças produtivas em ordem ao bem comum, constituem polos permanentes da análise e de propostas da Doutrina Social da Igreja de sempre, mas sobretudo a partir da Rerum Novarum (1891) de Leão XIII, da Quadragesimo Anno de Pio XI (1931) das diversas mensagens de Pio XII ou da Constituição do Concílio Vaticano II sobre a Igreja no Mundo Atual, em que todo um capítulo é dedicado aos valores da economia, salientando nomeadamente o desenvolvimento económico posto ao serviço do homem, ou as propostas para diminuição das desigualdades económico-sociais. Destes princípios se elaborou a Doutrina Social da Igreja, condensada em muitos textos, tratados e sistematizações, como se pode consultar por exemplo no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, disponível, disponível na página da Agência Ecclesia.
Alguns temas do livro
É significativo que o glossário dos 33 temas apresentados neste livro se inicie com o tema bíblico e evangélico da Agape, visando “enraizar-se na experiência bíblica e fazer a viagem desde a Antigo ao Novo Testamento”. Esta proposta faz-nos lembrar que a primeira encíclica de Bento XVI, Deus Caritas est começa precisamente com a referência a essa palavra, lembrando o texto que “a primeira novidade da fé bíblica consiste na imagem de Deus; a segunda, essencialmente ligada a ela, encontramo-la na imagem do homem” (n. 11).
A aproximação entre ecologia e economia é posta em evidência no capítulo “Ecologia integral”, que propõe o binómio “Economia+tecnologia integral” como forma de promover o cuidado da casa comum (p.106).
Outro conceito essencial da tradição bíblica e profética é o de justiça, em cujo universo significativo se encontram os conceitos de “generosidade radical, igualdade universal o sentido de cuidado capaz de transformar a vida e a responsabilidade pessoal do indivíduo, com o qual a graça divina pode sinergicamente cooperar” (p. 148).
Uma dimensão ultimamente Valorizada da economia é o “empreendedorismo”, que o Papa Francisco define como “uma vocação orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos”. Esta nova dimensão do conceito de riqueza, que pode ser mal vista porque mal usada (como se exprime no Evangelho ao afirmar “Ai de vós os ricos” censurados pelo mau uso dos bens) possui uma forte dimensão social e comunitária, quando “o empreendedor se caracteriza pelo seu comportamento inovador e pelo emprego de práticas de gestão estratégica da empresa”. (p.160), exigindo “vigilância, atenção e inovação criativa”.
Toda a nossa sociedade conhece exemplos desta capacidades de inserir no tecido social as dinâmicas da construção, raiz de toda a edificação social. Pelo seu empreendedorismo, os empresários tornam-se agentes do progresso e do bem estar social, disponibilizando trabalho e bens úteis aos cidadãos, também através do “justo salário, fruto legítimo do trabalho”, como assinala o Doutrina Social da Igreja.
Outro conceito abordado, geralmente mal visto, é o de lucro. Na economia de Francisco, quando a sua quantidade é estabelecida de modo comunitário, conflui positivamente para o bem comum (p. 233).
A análise do sentido da propriedade na economia, é buscada uma reflexão do teólogo franciscano Duns Escoto, recolhendo por ela o conceito de “destinação universal dos bens” em ordem ao bem comum.
É com base num afirmação buscada em E. Kant que se acentua o conceito humano e cristão de reciprocidade, dado que, segundo o filósofo ”todas as substâncias… estão em ação recíproca universal”. Salienta-se que “o conceito de reciprocidade se estende à consideração de comportamentos responsáveis”, tanto na economia como na natureza. (p.258).
Finalmente, tudo nesta visão da economia parece desembocar na responsabilidade, lembrando que “o homem livre é o homem responsável” (p. 269).
Em resumo, nestes 33 pontos de referência humana, que terminam em vocação, conceito aparentemente alheio à economia, mas pelo qual a economia pode adquirir todo o seu sentido, parece definido o caminho ético e antropológico deste universo de ângulos temáticos que configuram uma só visão da plenitude da condição humana.