O valor antropológico e cultural da materialidade dos símbolos

Por M. Correia Fernandes

[Na compreensão dos símbolos] a erudição é uma soma, a cultura é uma síntese, a compreensão é uma vida.    (Fernando Pessoa, Nota Preliminar para a “Mensagem”)

Toda a devoção se exprimiu sempre através da arte. E toda a arte é uma criação humana que nasce da natureza e da vida. Os níveis da criação artística são múltiplos e sempre variáveis, como podemos discernir no confronto entre uma obra de escultura popular, as expressões pietistas (como os santinhos), as esculturas do Aleijadinho ou as criações de Leonardo da Vinci, de Picasso ou de Klimt. E poderemos afirmar que em todos se encontram os traços do sagrado. É uma questão de procurar.

O livro de Carlos Azevedo, Estudos de Arte e devoção, recentemente apresentado em edição de Paulinas Editora, constitui uma demonstração desta busca dos múltiplos sentidos da obra de arte enquanto forma de descoberta e de expressão do sagrado na vivência espiritual e cultural das pessoas e das instituições, traduzidas no binómio arte/devoção: como a devoção conduz à arte ou como a arte é uma expressão que identifica, traduz e estimula a devoção. E de como o resultado deste binómio se torna uma riqueza cultural nem sempre discernida nas observações quotidianas.

São 12 os pontos de análise da expressão artística que o volume encerra, e que simbolicamente termina com a inserção na natureza de uma expressão artística da arquitectura, analisando a proposta espiritual do conjunto do Bom Jesus de Braga como mensagem artística de dimensão espiritual, associando devoção, arte e natureza, e mesmo o aspecto ecológico do conjunto, inicialmente apenas funcional, mas que hoje tanto se valoriza, do seu elevador a água. Há um oportuno apelo à valorização das pinturas e esculturas existentes, tando como à vigilância e valorização do arvoredo envolvente.

A capa deste precioso volume reproduz uma representação de S. João Baptista, segurando a bíblica pele de cordeiro com a mão sobre o peito, o cordeiro na outra mão, o cinto de couro e uma bandeira em forma de cruz, com a inscrição em latim lembrando que não houve ninguém maior (que João Baptista), segundo Lucas 7,28.

Em especial relação com a diocese do Porto, saliente-se um capítulo sobre um políptico representando a  Última  Ceia, da pintora Isabel Nunes, adquirido para a igreja nova do Candal, em Vila Nova de Gaia, cuja chave de leitura é a própria figura de Cristo, “de cabeça erguida e de olhar azul dirigido para o alto”, dando assim o sentido de orientação de todas  as demais figuras dos apóstolos que, na análise do autor, “convergem para Cristo”.

Igualmente relevante, por ser tema pouco abordado nos livros de arte, é a apresentação de um conjunto de “Placas devocionais hispânicas”, reunidas “a partir de obras de escultores, pintores, gravadores e ourives”, em diversos materiais, como bronze ou latão. São apresentadas 41 imagens, que vão da Imaculada Conceição e S. Tomás de Aquino, passando pelos apóstolos evangelistas e figuras da devoção popular, como Santa Luzia ou S. Sebastião.

Uma bela imagem existente na capela da Universidade Católica Portuguesa em Lisboa, datada do séc. XV-XVI, inspirou o estudo dobre a “Evolução do modelo iconográfico de Maria Sede da Sabedoria”, cuja descrição e análise confronta com outras representações mais antigas em catedrais europeias e também duas imagens dos séculos XIII e XIV, uma no Museu Alberto Sampaio, em Guimarães, e outra no Museu Guerra Junqueiro no Porto. Para entendimento do sentido simbólico destas imagens, é realçado o facto de que “Maria aparece mais como trono do Filho de Deus do que Mãe do Menino Jesus”. Uma visão mais teológica e salvífica, mas igualmente devocional.

Um dos mais extensos artigos deste conjunto (p. 19-41) aborda uma das mais fascinante devoções de Portugal: o Senhor Santo  Cristo, inspirada nas representações do “Ecce Homo”, em que são apresentados e analisados exemplos de vários locais entre  Itália, Espanha e Portugal (Convento da Esperança, em Ponta Delgada).

Múltiplos também são os “Registos de santos”, em que ressalta particularmente o caráter devocional e popular das representações, testemunhos de um sentimento e de uma linguagem devocional em que este “património de pequeno formato, mas de grande intensidade e influência no quotidiano dum povo” merece mais desenvolvimento e mais estudos.

Com este caráter popular contrastam as “Ilustrações da Pratica dos Exercicios Espirituaes de Santo Inácio, apresentados em edição de 1687,em que os editores procuraram ilustrar o sentido da doutrinação inaciana, como “missão didática de explicar as gravuras de modo a contribuir para uma maias plena contemplação”.

Uma outra dimensão devocional é a da Senhora da Lapa, que na região de Sernancelhe foi santuário mariano da maior devoção e afluência naquela região, cuja devoção datará do século XVI (como testemunha o poeta renascentista António Ferreira ao escrever “A esta lapa vimos, Virgem Santa /humildes e devotos peregrinos”), mas que foi especialmente difundida pelos jesuítas nos séculos seguintes tanto em Portugal como no Brasil. A sua devoção estendeu-se a locais como a Póvoa de Varzim ou Arcos de Valdevez, e também no Porto, em cuja igreja o livro foi apresentado.

Outra figura, abordada como orago de Santa Maria da Feira, é S. Nicolau, cuja história é recordada, desde a tradição da origem da Ásia Menor até à sua condição de padroeiro da Rússia, da Grécia e da Noruega, bem como a inspiração nórdica para a figura do Pai Natal. A figura episcopal é apresentada em estátua do século XV, na Misericórdia da Feira, e do séc. XIV em Museu Machado de Castro em Coimbra e titular de uma igreja e paróquia da cidade do Porto.

Ficam estas palavras de apresentação de uma obra de atraente leitura e digna de figurar não apenas nas bibliotecas mas no universo cultural da sociedade, ajudando não só a encontrar raízes mas a traçar linhas de rumo: esta é a sua dimensão antropológica.