Um livro de poesia que se compreende

Por M. Correia Fernandes

Um contacto com o livro de poesia de Paula Margarida Pinho, publicado nestes dias de 2023, com o título estas imagens que se inscreveram no tempo, mostra que a criação poética e as imagens que se inscrevem no tempo conduzem a uma largueza inesperada da alma. Inscrever imagens só se pode fazer pela palavra, que é a sua mensageira, como caminho e forma de criar novas imagens e de nelas articular o coração.

Inscrever imagens no tempo é buscar um suporte efémero, mas contínuo na sua efemeridade: é a independência do gesto criador.

Um dado que, desde o primeiro contacto com o texto, agora em forma de livro, me chamou a atenção foi a presença frequente de figuras inspiradoras do mundo da poesia, de autores portugueses em que a palavra é mãe de sugestões e de dinâmicas vitais, e que me fizeram recordar os caminhos antigos da poesia (e obviamente da prosa) da literatura portuguesa em universo escolar, porque este, o universo escolar, vive também, e  precisa da palavra dos poetas.

Encontramos os clássicos, que são aqueles que estão sempre: O Fernando Pessoa, que é aquele onde está tudo, no dizer de Eduardo Lourenço, mesmo com o cansaço de Álvaro de Campos; o Cesário Verde, onde estranhamente brilha sempre uma claridade crua, o Sebastião da Gama que nos faz andar pelos caminhos do sonho, juntamente com a transmissão da poesia na escola, ou o velho Sá de Miranda, que quando não havia incêndios sente que tudo arde, e o Eugénio de Andrade, que sente gastas as palavras mas que lhes busca sentido; a Sophia, com o longo e indelével rastro que a sua poesia continua a traçar nos sentidos, na mente e no coração e em toda a dinâmica humana; ou o jovem Daniel Faria, que tem pavor, como nós, de tudo o que morre e também do que está vivo, porque também morrerá (menos o que permanece); ou o olhar requerido de Fiama Hasse Pais Brandão; ou António Gedeão e o poema em forma de buganvília, ou o fulgor do instante de Tolentino de Mendonça. Ou a do meu amigo Manuel António Pina, genial nas suas contradições.

Toda a poesia é uma experiência pessoal, com todas as influências que ajudam a dar-lhe forma. Mas há pessoas e momentos que se tornam sempre presentes de forma contumaz, como a memória da mãe, ou dos mortos que se acordam sem os ferir; ou a planta que morre na varanda porque morreu a dona.

Outros aspetos do livro

Os pequenos grandes temas de qualquer poesia palpitam igualmente nestas páginas. Não vale a pena a sua enumeração, porque eles estão mais em nós que no livro: as memórias e a evocação, que são toda a poesia; e as flores, sem as quais não há poesia; as árvores e os pássaros que são os grandes mensageiros de tudo, como as andorinhas ou as gaivotas.

Estão também os desalentos como o tempo do faz de conta; os tempos que se vivem e os tempos que passam, os espaços vivenciais como o jardim ou a praia.

Estão ainda os momentos de tristeza e de sombra, que são o lado mais de dentro do poema: sem tristeza e dor não havia poesia; e todo o drama humano é a mais funda raiz da palavra.

Está também a música, onde tudo vai viver e sentir, e há obviamente a presença constante do amor, porque é por ele que tudo vai nascendo pelas mais múltiplas e inesperadas formas.

Há a relação entre a palavra e a imagem: na escrita e na criação pictórica, nascida da inspiração estética e da criatividade da autora. Esta é uma das originalidades deste livro, porque se há imagens que valem mil palavras, há também palavras que criam todas as imagens… As imagens estão nas palavras mostrando como na tessitura dos dias se desenha uma paisagem campestre.

Há uma grande dimensão afetiva nestes poemas, ao lado da sua inscrição temporal e atemporal: são de todos os tempos as árvores e os pássaros que abundam, as praias e os rios, ao lado do da chuva ou dos desalentos da pandemia, mas é no poema que eles se tornam intemporais.

A última ideia que me surge agora, em louvor destes textos de um universo vário e multiforme, é o sentimento de que se trata de uma poesia que se compreende… Coisa não fácil, porque modernamente muitos fazem como se diz no Evangelho: pensam que por dizerem muitas palavras, ou complicadas, se tornam bons poetas.

Este livro é o inverso de tudo isso. Por isso assume o convite a que seja lido e sentido.

Nota: A apresentação do livro na Biblioteca da Vale de Cambra fez-se o longo de quase duas horas e contou com a presença do editor, João Manuel Ribeiro, da família e de colegas e amigos da autora.

CF