Voltemos então às formas de linguagem

Por M. Correia Fernandes

Um dos grandes problemas da Matemática continua a ser… o Português

Título de Publico, 29 de junho de 2023

É significativo o sentido desta afirmação. Ela resultava do facto de um professor de Matemática, a propósito da prova de exame, salientar as dificuldades dos alunos “em fazer  interferências ou em usar argumentação” para operacionalizar os conceitos matemáticos. É motivo para pensar. Mesmo a utilização dos números, tanto em moda nos dias de hoje, exige uma capacidade de compreensão linguística.

Os contactos com a linguagem quotidiana não deixam de nos trazer por vezes surpresas inesperadas para a língua portuguesa, enquanto ela existe.

O tema tem sido objeto de várias reflexões em torno da necessidade ou conveniência da abertura às expressões de novas realidades por novos termos. Sempre assim foi, umas vezes bem outras vezes mal. Mas também aqui não é fácil distinguir o mal do bem, sendo que os critérios mais comuns são o do interesse pessoal, o dos contactos com fontes emergentes e a falta de sentido crítico para discernir, para além do gosto exibicionista de alguns falantes (ou escreventes), a correção dos conceitos e da sua expressão.

Vejamos mais alguns casos significativos. Uma das siglas que mais se tem visto recentemente é o, ou a, CEO, que ouvimos ler cêiou, e a outros ceo, seguido do nome de uma qualquer empresa nacional ou estrangeira. O que é que tal sigla significa para um verdadeiro cidadão falante da portuguesa língua? Dantes ouvíamos falar de Director, Director Executivo, Presidente do Conselho de Administração e outras barbaridades linguísticas. Agora estamos livres, temos o CEO, Chief Executive Officer, escrito dom dois ff embora só se pronuncie um, como em Director, que nos mandaram eliminar. Estamos livres e modernizados, temos o CEO!

Encontramos também a forma Dean da Nova ou seja, da Universidade Nova de Lisboa. Esta fórmula Dean é especialmente curiosa, por ser usada por exemplo para os Colégios cardinalícios e nos Colégios capitulares das catedrais, onde se afirmava o Deão como o que exercia a função de orientação. Lembra-se que nas Faculdades espanholas o Diretor se chama Decano (que é a forma original de Deão). Já em França podemos encontrar o Décanat, dirigido pelo Doyen (ou Doyenne). Entre nós, além do Deão das Catedrais, temos agora o Dean da Faculdade.

Outra grande novidade nos títulos dos jornais, que já não se contentam com o streaming ou os startups, ou com os processos jornalísticos da silly season, é que agora podemos chegar ao conhecimento dos Influencers, e curiosamente até encontrei o termo num artigo da escritora portuguesa Lídia Jorge, figura de relevo na nossa escrita e na invenção romanesca. E outro título periodístico garante que “França é o primeiro país da EU com regras para influencers (Público, 20/6/2023). O que significa que eram gente sem regras.

O que são então influencers? Segundo definições dignas do crédito das redes sociais (que não será muito mas é julgado importante e definitivo) os influencers, curiosamente palavra anglo-americana honestamente de origem latina (vem do verbo influere, algo como fluir para dentro, ou para algum sítio real ou fictício), são gentes que procuram manter uma presença convincente nas redes sociais, por forma a criar convicções consumistas, valorização de produtos e formas de marketing (cá está outra forma que tal do incomensurável domínio dos ings). Mas imagina-se também que sejam os que desejem inocular no tecido social ideias dominantes e dominadoras, mensagens mobilizadoras, criar factos políticos como alguns comentadores televisivos encartados no processo, criar verdades fictícias que são as mais influentes, enfim criadores de falsidades aparentemente bem intencionadas para aqueles que delas usam e de que querem fazer usar os outros.

Agora vem outra: os transformers, que adquiram já lugar cativo nas mais fundas páginas jornalísticas. Tradicionalmente transformers eram transformadores que tornavam uma corrente eléctrica noutra corrente de menos voltagem. Agora a coisa mudou: Transformers são robôs alienígenas fictícios, criados pelo universo do mundo do cinema ou das imagens, que falam como pessoas e se transmutam em tudo o que é possível, capazes de transformar seus corpos em objetos inócuos como veículos ou naves espaciais, ao serviço da ficção cinematográfica ou outra… Até se encontra em exibição um filme com esse título.

Será só isso?

Não haverá por aqui um caminho de dominação como a chamada Inteligência Artificial, tecnologia transformada em fórmulas de influência social ou pessoal, sugerindo comportamentos, valores psíquicos distorcidos, desequilíbrios sensoriais ou comportamentos desviantes?

A Inteligência Artificial permite que os sistemas tomem decisões apoiadas em dados digitais, que lhe são fornecidos e que podem ser tratados por forma a construírem outros novos dados, tanto de conceitos como de imagens.

Estas formas de aprofundamento tecnológico permitiriam multiplicar capacidade racional do ser humano, resolvendo problemas práticos, driar imagens, simular novas situações, organizar respostas a problemas emergentes, potenciando a capacidade da inteligência que lhes deu origem.

Outro fenómeno em que a comicidades e o ridículo emergem é a moda instalada nos discursos de dizer o masculino e o feminino das palavras, como forma de expressão igualitária: como deputados e deputadas, professores e professoras, enfermeiros e enfermeiras, técnicos e técnicas, etc.

Conhecíamos a fórmula clássica de iniciar um discurso: “minhas senhoras e meus senhores”, tão antigo como a melhor oratória solene ou a da mais pretensiosa displicência ocasional.

Esta forma de pretender ser abrangente em questões de género tem levado a expressões caricatas, como ouvi a alguém que saudava solenemente todos os presentes e presentas, ou orador que se dirigia aos senhores ouvintes e ouvintas

Poderíamos também falar de todos os violinistas e violinistos, pianistas e pianistos, clarinetistas e clarinatistos… Pelo andamento da carruagem não faltará quem venha a fazê-lo.

Podíamos então sugerir também caminhos e caminhas, estrados e estradas e graciosidades similares.

Importa acentuar: o facto de se usar e forma do género masculino das palavras não tem que ver com a identidade psíquica ou sexual dos seus destinatários, ou com a sua preponderância, mas apenas com a função que naquele momento estão a desempenhar. Esta obsessão pelo género constitui uma distorção da relação pessoal  e do sentido funcional da palavra.

Pode constituir tendência equilibrada o esfoço de substituir certas fórmulas de linguagem, em que parece favorece-se o género masculino, por formas mais neutras (em género), mas integradoras em sentido, como falar de pessoas (em vez de homens e mulheres) ou fórmulas similares, como Humanidade em vez de o Homem.

Aliás convém lembrar que quando falamos de Homem (por exemplo na tradição bíblica ou filosófica), como a Salvação do Homem, ou As Idades do Homem, nos referimos sempre ao género humano. Nas línguas clássicas, sobretudo no grego e latim, sempre havia termos que designavam a pessoa enquanto entidade racional ou social e a pessoa enquanto masculina ou feminina. Em grego uma realidade era o Anthropos, que englobava a toda a identidade humana, e o Anêr (homem) ou a Gunê (mulher), tal como em latim se distinguia o conceito englobante de Homo (pessoa humana) e os conceitos de vir (masculino) e mulier (feminino). As línguas europeias não assumem essa subtileza e o subterfúgio distintivo conduz às fórmulas incultas e pretensiosas que atrás referíamos.