
Uma leitura do filme “Marlowe: O Caso da Loira Misteriosa” *
Por Alexandre Freire Duarte
“Marlowe” é uma obra muito especial de literatura cinemática. Fiel ao estilo do criador literário da personagem cujo nome ganha, agora, direito a título de filme, eis-nos envoltos de: metáforas; subversividade; frases que são epigramas com múltiplas camadas de sentido; e uma personagem central introvertida, cínica, dura e, ao mesmo tempo, faiscante e cansada da vida, talvez por ainda ter uma orientação moral (a busca da justiça e o cumprir do dever) no meio do seu mundo (decadente, hipócrita, nefário e sórdido).
Neste meticuloso drama detectivesco de época, o par Nesson e Jordan são perfeitos na edificação de uma sinistra panela de pressão que acaba por explodir. O cenário (cheio de cores vivas), a música (emanada de trepidantes saxofones), o sensível tratamento dado a personagens geralmente marginalizadas são brilhantes. Mas não é de somenos, para o resultado final, o facto de “Marlowe” estar repleto de atores famosos (e da “nossa” Daniela Melchior) que se entregam com paixão aos seus papéis e, assim, nos deixam sentir o seu nervosismo e dor. Contudo, o resultado poderia ter sido muito melhor, pois o estilo parece sobrepor-se à história e a criatividade aos engodos dados aos espectadores.
Esta obra, quando vista desde a Teologia, aponta-nos para o facto de que a vida é dura, sobretudo onde não chega o calor do amor. O Cristianismo não existe para fazer a vida de quem quer que seja mais cómoda (basta ler o “Pai-nosso” e o que nele pedimos como discípulos decididos do Senhor), mas para ser uma luz de sentido tão brilhante que “cega” com a esperança infinita que comunica. Aquela esperança que não julga, antes revela que é quase impossível haver trigo sem joio num Mundo e numas pessoas que se vão formando ao ritmo, não das obrigações que ferem, mas do amor que é ferido.
Se neste filme quase todas as pessoas buscam os seus próprios interesses, o cristão – esse pecador salvo – vive sabendo que só evolui em Cristo apartando-se da intoxicação da recusa de uma beleza na qual converge o máximo de gratuidade com o máximo de afetos. Isto não é um segredo para a longevidade, mas para a santidade que permite a Deus deixar de gemer ao encontrar um coração em que pode ser plenamente Ele mesmo.
“Vida dura”, disse eu, mas não fatalista, antes sempre livre e passível de deixar transparecer um Cristo sempre maior, quando deixarmos de pensá-Lo (como à Igreja e aos demais) face a nós, antes nós face a Ele (e àquela e àqueles). Toda a vida nos foi dada em troca de nada, donde, mesmo no meio da nossa fragilidade, não nos queixemos de nada quando toda ela nos for pedida, grão a grão, para alimentarmos a clareza do fogo consumidor do Deus-Amor. Só assim seremos a Sua predileta música ao estar com o nosso compasso espiritual ajustado, pois numa quase adoração contínua a Ele, a qual precisa de ser feita segundo os Seus critérios, e não de acordo com o que nos apetece.
Sim: podemos viver exaustos e cansados de tudo o que no mundano nos atinge e faz doer enquanto cristãos (mais ainda quando nos é “arremessado” por cristãos) e, em resultado, nos poderá levar a pecar. Mas lembremo-nos que Jesus não nos pede conta de pecados, mas estes mesmos pecados; os que nos impedem de ver que o Céu já está alinhado com esta vida presente, no que nos faz recordar que a nossa ação cristã não deve passar por grandes ideias, mas por darmos a cintilar e a provar a doçura de Jesus.
(* EUA, 2022; dirigido por Neil Jordan; com Liam Neeson, Diane Kruger, Jessica Lange, Danny Huston, Alan Cumming e Daniela Melchior)