
Por M. Correia Fernandes
A Solenidade litúrgica de S. João Baptista merece tradicionalmente na cidade do Porto duas celebrações, geralmente presididas por Bispos: a da igreja de S. João Novo e a de S. João da Foz. Lembra-se que São João é uma figura em que a Liturgia da Igreja celebra o nascimento, e não a morte ou o martírio, como acontece com os apóstolos e os santos. É também um dos poucos santos cujo dia é assinalado na liturgia como “solenidade”, a classificação mais elevada de todas as celebrações, já que apenas as festas do Senhor, algumas de Santa Maria, a de S. José (19 de março), a dos Apóstolos Pedro e Paulo (29 de junho) e de Todos os Santos (1 de novembro) merecem essa categoria litúrgica no atual Missal Romano.
A igreja dedicada a S. João Novo, no centro histórico da cidade, é sede da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos, Cruz de Cristo e Nossa Senhora do Rosário, “com assento na igreja de S. João Novo”. Ressalta nesta igreja à entrada, o altar dedicado a São João, ao lado do altar Senhor dos Passos, que dá centralidade ao nome da Confraria da igreja. Ali se celebra em 24 de junho a solenidade de S. João, este ano presidida pelo pároco, Monsenhor Agostinho Jardim.
Outra igreja que tem por patrono S. João Batista é a de S. João da Foz, que tem nos últimos anos merecido também a celebração do Crisma, de âmbito paroquial, a que este ano presidirá o Bispo do Porto. O cenário da grandiosidade desta bela igreja setecentista, do equilíbrio dos seus belíssimos altares e da sugestão das imagens que os adornam é introduzido pela imagem de S. João na sua grandiosa frontaria, tão alto lá em cima que contrasta com a simplicidade e austeridade da sua vida, mas é digna da grandeza salvífica da sua missão. (fig. 1).
Porém, a inspiração de S. João Batista vai muito para além da cidade que lhe devota mais que devoção, um sentido de presença popular e uma reconhecida convivência de espírito fraterno. Encontramos muitos locais (paróquias, santuários e freguesias civis) onde a sua presença e inspiração é um sinal de esperança. Uma delas é a de Tabuado, no Marco de Canavezes, onde uma pintura mural do século XVI que representa este santo (acompanhado por Cristo Salvador, ao centro, e São Tiago, no lado direito), e que se encontra na parede fundeira da capela-mor da igreja, e que tem sido objeto de divulgação pela Rota do Românico. (fig. 2)
Outra cidade que lhe é dedicada na diocese do Porto é a de S. João da Madeira, a única cidade que só ela é todo o concelho. O boletim mensal paroquial Restaurar assinala este ano antecipadamente o padroeiro com a sua imagem de primeira página e uma prece em que recorda a missão profética lhe pede: “Aplanai os caminhos que pisamos e fazei que o Senhor nos abra e estenda as suas mãos de bênção”. É uma prece de todos nós.
Outra paróquia que o tem por padroeiro situa-se mais perto do Porto: a de Canelas, em Vila Nova de Gaia. Sobre ela escreveu o P. Abílio de Sousa Rodrigues uma monografia intitulada São João batista Padroeiro de Canelas, ilustrada pela sua imagem, em que aponta para o cordeiro colocado a seus pés, referência às palavras evangélicas de João, 1,29, afirmando “É Ele o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”. Aliás, a presença do cordeiro é assinalada na maioria das imagens de S. João.
Um pouco mais longe da vista mas perto das águas durienses encontra-se outra imagem histórica e popular de S. João, em Cárquere, Resende, o local e a história que inspirou e deu origem ao romance queiroziano A Ilustre Casa de Ramires. A igreja mantém a referência à narrativa sobre Egas Moniz e D. Afonso Henriques que ali teria sido curado. Este S. João de Cárquere exibe apenas a simplicidade de um grande bastão e um pequeno livro sobre o qual repousa o cordeiro. (fig.3)
Não poderíamos esquecer da imagem existente no altar lateral da igreja dos Clérigos no Porto, uma igual visão da grandeza do santo, que não deve ficar despercebida como parece acontecer, em confronto com a Senhora da Assunção, o S. Pedro in vinculis e o S. Filipe de Néri no altar principal, ou mesmo com a belíssima parentela que se encontra no altar da direita. (fig. 4)
Mas um percurso pelas paróquias da Diocese do Porto revela-nos que S. João Baptista merece presença e veneração igualmente em geografias tão díspares como Foz do Sousa (Gondomar), Macieira (Lousada), Gatão, Campelo e Várzea (Amarante), Gestaçô, Grilo e Ovil (Baião), Luzim (Penafiel), Paraíso e Raiva (Castelo de Paiva), Sernande (Felgueiras), Alpendorada e Matos e Folhada (Marco de Canaveses); e no sul da Diocese: S. João de Ver (Feira), Loureiro, Cesar e Ossela (Oliveira de Azeméis), Cepelos e Vila Cova de Perrinho (Vale de Cambra) e S. João de Ovar. Ninguém deve ser esquecido e não queremos esquecer ninguém.
Estes dados e esta presença são a expressão eclesial da relevância que a figura de João Baptista adquire tanto na história bíblica como na história da Salvação. Todos os evangelistas referem a pessoa, a presença e a missão desempenhada por João Batista. Com ele começam as todas as narrativas evangélicas do anúncio messiânico de Jesus. O prólogo de S. João refere-o logo no versículo 6.º do evangelho. Mateus começa com ele a narrativa da pregação de Jesus (cap. 3) e Marcos logo no 1.º capítulo (v. 4). Lucas situa a sua ação com o habitual rigor histórico “no décimo quinto ano do imperador Tibério”, ao iniciar, após o “Evangelho da Infância”, a narrativa da pregação de Jesus. Surge assim a centralidade da ação messiânica de João Batista e a sua relevância na história da salvação. Judeu, filho de Zacarias e de Isabel, nascido como miraculosa expressão de uma dinâmica salvífica de tradição bíblica, homem de denúncia e de coragem, de rigor e penitência, homem do deserto que cria uma comunidade messiânica, ele traduz uma novidade na condição humana. Por isso disse Jesus: “Entre os nascidos de mulher ninguém foi maior que João Batista”.
Nasceu então desta presença da solenidade litúrgica poucos dias depois do solstício do verão (no hemisfério norte, mas estas coisas nasceram no hemisfério norte), esta ligação entre a celebração do santo e a celebração festiva da entrada do verão, festa de calor e alegria, de expressão humana e de explosão de pulsões eufóricas. Assim se misturou o santo penitente e austero, de apelo à conversão, tão necessária em todos os tempos e nos tempos de hoje (a conversão que afasta da violência, que procura o equilíbrio social e o sentido fraterno das populações, que busca um relacionamento humano de equilíbrios afetivos e sensoriais), ao santo que faz eclodir nos relacionamentos humanos o elemento epicurista das sensibilidades sensoriais. Viva-se pois um São João de festa, de convívio, de espírito festivo e fraterno, e das vivências humanas mais genuínas.