Juízo moral sobre o Conde Ferreira e outras vidas passadas

Por Jorge Teixeira da Cunha

Um episódio de há pouco no Hospital Psiquiátrico Conde Ferreira veio trazer ao de cima um assunto dramático: o juízo moral sobre a vida e as acções de personagens históricas. É um tema sem fundo nem fim. Vamos dedicar-lhe este pequeno texto, uma vez que se trata de um benfeitor notável que, tendo ganho uma enorme fortuna em negócios que hoje condenamos, como o comércio de escravos, a aplicou a construir escolas e, nomeadamente, o Hospital que leva o seu nome, e pertence à Santa Casa da Misericórdia do Porto.

Joaquim Ferreira dos Santos nasceu para os lados de Campanhã, nos anos finais do séc. XVIII e fez fortuna no Brasil nas primeiras décadas do século seguinte. Dizem que transportou alguns milhares de pessoas escravas deste Angola para o Brasil o que, entre outros negócios, lhe permitiu reunir uma enorme fortuna que, no fim da vida, destinou a obras de benemerência e de caridade. Centenas de escolas foram construídas por todo o país e mais que um hospital. O mais importante destes é o conhecido Hospital Conde Ferreira.

No tempo em que viveu, ele cumpriu as leis jurídicas tanto de Portugal como do jovem Estado brasileiro, quanto à condição de servidão que estava em vias de ser abolida. É verdade que a escravatura nunca foi bem-vista pela moral cristã. Mas quase todos faziam vista grossa sobre esse comportamento que hoje nos envergonha. No seu tempo, o Conde Ferreira recebeu o reconhecimento social e político do seu génio comercial e o reconhecimento da sua acção de benemerência em favor de tantas organizações de caridade pelo país fora. O problema que temos entre mãos é o de julgar estas vidas e acções do passado com os nossos olhos de hoje. Temos maneira de resolver este problema? Que princípios de moral cristã nos servem para isso?

A relatividade histórica dos modos de vida foi sempre um facto. Basta lembrar que, com poucos anos de diferença, o rei Luís de França se santificou a combater muçulmanos e o irmão Francisco de Assis se distinguiu pelo esforço para dialogar com o Sultão de Damieta. Porém, o assunto ganha uma nova relevância, dada a sensibilidade ética do nosso tempo e a violenta condenação que fazemos das vidas passadas que não correspondem aos nossos padrões. Lembrar que o futuro também condenará tanas coisas de hoje não comove um grande número de inquisidores que pululam de vários quadrantes, mesmo das hostes do catolicismo. Como proceder então?

Parece que um primeiro caminho é o de tentar perceber o que é a bondade da acção humana. O critério da acção tem de elevar-se a um nível metafísico, ou seja, mais alto do que os critérios imediatos, quase sempre ameaçados pela parcialidade subjectiva e pelas convicções valorativas, situadas no tempo e no espaço. Esse critério mais alto existe? Temos de responder que sim, muito advertidos que não é fácil identificá-lo. Para os cristãos, o critério da bondade é a vivencia de Jesus, que as fontes originárias do Novo Testamento nos narram de forma muito variadas. Vamos assentar na ideia de que a caridade de Cristo é o único critério da acção boa, caridade essa que se identifica com o frente-a-frente filial com Deus, de onde vem tanto a força de agir como a bondade da acção. Esse critério foi vivido a primeira vez por Jesus e, como sabemos, desencadeou a oposição feroz do mundo. Mas esse critério é o único que funda o poder verdadeiro de agir e pode reconciliar, na história, as acções mundanas.

Para julgar a vida do Conde Ferreira e outras personagens do passado, temos de começar por reconhecer que na história humana apenas a bondade cria justiça e futuro. Por isso, temos de dizer que quem agiu bem foram os escravos, os loucos e os pobres que construíram a sua própria história de vida, usando para isso os bens amealhados pelo benfeitor que as viabilizou com o seu dinheiro malganho, mas bem aplicado. O Conde Ferreira pode ser perdoado porque vai aos ombros dos pobres cuja vida tornou possível, ao doar os seus bens. É que as únicas acções que podem ser ditas boas e justas são essas que brotam do coração pobre e dinâmico, cuja força se identifica com a filiação divina. Por isso, só a iniciativa dos escravos, dos loucos, das crianças pobres, porque são as de Cristo, podem validar e reconciliar a história. Não foi o Conde Ferreira que fez a história. Foram os pobres que a fizeram com o dinheiro dele. Talvez o Conde não tenha sabido viver bem, apesar da sua eficácia e génio, mas certamente soube morrer bem e, nesse morrer bem, foi encontrado por aqueles que são os verdadeiros autores das obras de beneficência que hoje levam o nome do estranho benfeitor.