Sobre os valores educacionais e profissionais

Por M. Correia Fernandes

Temos sido confrontados nos últimos tempos com um excesso de notícias sobre o sistema educativo. Geralmente abordam questões como a escola pública, a carreira dos professores e de outros agentes do sistema, mas habitualmente esquecem o essencial do problema. O que se passou no contexto da celebração do Dia de Portugal, no Peso da Régua, ultrapassa todos os valores essenciais da educação. Os próprios agentes sindicais compreenderam que a defesa dos valores profissionais e dos direitos laborais não justificam a falta de senso e de ética dos processos. Por isso se assinalou o distanciamento entre as organizações sindicais e as ações oportunistas de alguns agentes.

Sobre a questão essencial, regressamos a uma reflexão já publicada nestas páginas:

A Educação em Portugal (dizemos “educação” e não apenas “ensino”) tem vindo a viver tempos controversos e conturbados. Isso acontecia mesmo antes da convulsão trazida pela pandemia, que desarticulou todo o sistema e o pôs a funcionar por engrenagens espúrias do tipo tecnológico, com soluções de rapidez e conveniência, edificadas através da ausência e dos medos, que conduziram a um conjunto de fórmulas às quais o acto e o gesto educativo andam alheios, em que todo o processo educativo se sentia em desmoronamento.

A educação deixou de ser um tema e uma inquietação governativa, em favor do império do universo tecnocrático e das inquietações laborais e profissionais. Já nem se fala das ações e efeitos da guerra: tudo parece reduzido a meras questões laborais, evidentemente legítimas, mas que não devem desvirtuar o sentido essencial da ação educativa.

Tempo houve em que o Ministério da Educação era uma ministério valorizado, quer pelo prestígio dos seus titulares e dirigentes, quer pelo alcance das suas iniciativas nos campos familiar, social e cultural, na defesa e valorização dos processos e conteúdos científicos e dos valores formativos do saber e do conhecimento. Nas duas últimas décadas tem-se verificado que a organização de todo o processo educativo se tem vindo a transformar num universo de estruturas centralizadas em torno de uma espécie de “burocracia educativa”, em que substância é engolida pelo processo, e o conhecimento substituído pela tecnologia.

Importa por isso voltar ao essencial: toda a educação deve tornar-se a ação de construção de um desenvolvimento humano e social mais saudável e fecundo. Uma apresentação inadequada da antropologia cristã acabou por promover uma concepção errada da relação do ser humano com o mundo que se centra no êxito social e nos interesses profissionais.

Será uma “apresentação inadequada da antropologia cristã”, de que fala o papa Francisco, que deve ser substituída por novos conceitos em ordem a promover processos renovados para uma ação educativa centrada nos valores humanos e nos caminhos da cultura.

Assim, a valorização profissional dos docentes, a chamada defesa da escola pública (toda a ação educativa é escola pública), e da sua qualidade profissional não pode esquecer a valorização do saber, da cultura, dos valores éticos, do espírito de uma construção equilibrada do humanismo, para cuja edificação o espírito cristão constitui a dimensão mais integradora. Há que regressar às competências do saber ser, saber fazer, saber agir e saber estar em relação com os outros, de que falou Jacques Delors.

Importa que a luta pela dignificação da atividade docente, tão relevada nos dias que correm, nem sempre pelos processos mais dignificadores da profissão, se torne ela própria um modelo da intervenção social das profissões: todas elas se devem pautar pelos valores essenciais do humanismo e da defesa e construção de um justo e equilibrado património histórico, artístico e cultural. Eles fazem parte da identidade comum de um povo, servindo de base para construir uma cidade e uma sociedade habitável, construída em espírito fraterno. É preciso integrar o saber, a história, a cultura no universo laboral para construção de um universo educacional.

Toda a valorização profissional deve tornar-se uma edificação construtiva do bem comum.

NOTA – Este texto constituía o editorial da semana passada, que por razões técnicas falhou a sua presença. Pensamos que não perdeu a atualidade.