
Uma leitura do filme “Suzume” *
Por Alexandre Freire Duarte
Não via um filme de animação japonesa desde os últimos sucessos de Hayao Miyazaki, mas, como foram tantos os jovens que vi com objetos inspirados em “Suzume”, que arrisquei-me a uma desilusão e deparei-me com uma enorme atração. O filme é uma mistura de mitologia e realismo, japonesismos e universalismo, saudosista e moderno, numa fusão etérea de cores, sons e tensão que nos elevam do chão e, ao mesmo tempo, a ele nos prendem; que nos fazem ver a magia de Shinkai e o nosso coração.
O drama e a ação são finamente cortados por momentos de comédia que, entrelaçados entre si e a música em laivos de jazz, elevam a trama a diversos níveis metafóricos. Isto é tão fascinante e frustrante quão o uso magistral do contraste entre a luz exuberante e as sombras bravias, não nos deixando impávidos ante as emoções que nos chegam em ondas sucessivas, por vezes avassaladoras, mas sem, contudo, sentirmos repetições fúteis ou fatalismos funestos. E isto, por haver tempo para conhecermos as figuras e as suas histórias, as quais nos dirigem para um final inventivo e assintomático.
Teologicamente falando, “Suzume” tem tantos temas que mereciam uma ponderação crística que parece indelicado só eleger alguns. Mas eleger devo. Assim, e desde logo, estamos ante um apelo, profundamente sentido, para não perdermos as nossas memórias e os locais onde as construímos. Elas também são quem somos (e tais locais talqualmente, mesmo que, agora, não sejam mais do que ruínas ou prédios). Isto sara-nos e dá-nos um sentido no amor do Senhor para o presente e o futuro, pois todos somos bancos com três pernas que andam porque para isso somos criados: sermos imagem da Trindade, por mais desajeitados que sejamos e pareçamos nas nossas vidas.
Por outro lado, temos a temática dos desastres com muitíssimas causas geradoras de ansiedade. Aqui a mensagem de Jesus transparece de uma forma mais clarividente neste filme tão alheio a Ele. Tudo está nas mãos do Pai e nada acontece sem que Ele se envolva com o que está, com carinho, nas mãos do Filho. Sim: vamos passar por diversos desastres, e eles deixarão marcas para o nosso futuro, mas é no “passado” desses acidentes que nos devemos preparar, com reverência e fé, para elas. Só assim cresceremos e aprenderemos a viver, na liberdade amorosa dos filhos de Deus, a fazer o luto, a celebrar a recriação e a viver com o imprevisível (mais do que tudo do próprio agir amoroso de Deus e dos demais) como forma de missão, estilo e “meta-volante”.
Enfim, vemos, novamente de um modo muito crístico, que por mais que lutemos contra isso, há, em nós, muito que só se encaixa (e fortalece o demais) se vivermos a ajudar os demais, inclusive os que nunca conhecemos. E isto, mesmo que isso nos peça sacrifícios (de tempo, de apeteceres, …) que nos levem àquele rememorar e àquele luto e, quiçá, a um viver sem podermos ter medo de morrer, mas também, e sobretudo, com um enorme gosto agradecido por vivermos biologicamente durante o tempo que estiver diante de nós. Só assim atrairemos, sem clichés, os demais para a Vida integral em Jesus.
Que mundo deixarei ao meu filho? Não sei. Mas estou mais interessado em deixá-lo nas mãos de Jesus para ele querer ter, com Este, os demais nas suas mãos. Talvez falhe, mas saberei que o terei tentado chamar a dar o coração à eterna liberdade do amor.
(* Japão, 2022; dirigido por Makoto Shinkai).