Dois escritores diversos unidos pela palavra e pela amizade

Por M. Correia Fernandes

No dia 4 de junho de 1978 falecia em Santa Bárbara, na Califórnia, o professor, poeta, critico, ficcionista, Jorge de Sena que naquela Universidade trabalhou nas últimas décadas da sua vida. (1919-1978).

No dia 13 de junho de 2005 falecia no Porto um dos seus mais celebrados poetas. Vivera os últimos tempos da sua vida junto ao jardim do Passeio Alegre, onde se perfilam palmeiras que ele cantou em poemas como este:

Chegaram tarde à minha vida
as palmeiras. Em Marraquexe vi uma
que Ulisses teria comparado
a Nausica, mas só
no jardim do Passeio Alegre
comecei a amá-las. São altas
como os marinheiros de Homero.

Lembro vários encontros memoráveis com o poeta, que se disponibilizou, apesar da sua relutância por estudos académicos ou profissionais, realizados nos tempos gloriosos do Porto 2001, capital da cultura, no seu pequeno auditório da Caçada de Serrúbia, em que tive a honra de conduzir e ele acolheu simpaticamente três grupos de professores, para diálogo partilhado, nos tempos em que se tomava a sério a formação de professores, neste caso os de língua e literatura portuguesa, e se mantiveram encontros com outro Prémio Camões, o Manuel António Pina, e com outra figura do universo mental portuense, Fernando Guimarães (felizmente vivo).

Um dia foi-lhe perguntado quais eram os poetas que mais admirava. Avançou Gil Vicente, Camões, Camilo Pessanha, Fernando Pessoa, na sua dimensão pastoril e campestre de Alberto Caeiro. E dos mais contemporâneos? Pensou e disse: Há que lembrar Sophia, mas encontro também muito talento noutros mais jovens. Creio lembrar que citou João Miguel Fernandes Jorge (certamente pelas suas afinidades sobre a Voz e a Palavra), e acrescentou: “Talvez o melhor de todos nós fosse o Jorge de Sena, mas “tinha o pé muito pesado”, certamente pelo vigor das suas frases  e a força interventiva das suas imagens.Fiquei com a ideia de que havia entre eles alguma diferenciação ou mesmo alguma rejeição.

Pois agora ao folhear a Correspondência entre os dois, publicada pela Editora Guerra e Paz, com organização e apresentação de Mécia de Sena e Isabel de Sena e notas de Jorge Fazenda Lourenço, publicada em 2016, lá se pode encontrar ao longo de 617 páginas, numerosas  dedicatórias bem significativas, como estas: “Ao Jorge de Sena, poeta admirável e amigo exemplar”. E para Os afluentes do silêncio tinha esta dedicatória: “Para o Natal da Mécia e do Jorge, no mesmo abraço” (1970).

Esta correspondência de quase trinta anos constitui um tratado de presença, amizade, cumplicidade literária, iniciativas de ambos, projetos à distância (quando Jorge de Sena esteve na Califórnia), incluindo a sua aceitação definitiva como titular para o Departamento de Espanhol e Português daquela Universidade.

Encontramos os projetos pessoais, como este “Estou firmemente decidido a ir à Europa no Verão” (1971), ou a referência a um estudo sobre a sua própria obra, “análise de um poema meu”, “muito boa como técnica e brilhantismo, menos quando creio que, de certo ponto em diante, se engana na interpretação” (refere- a um estudo de Carlo Vittorio Cattaneo, que até foi seu companheiro de Departamento.

De Eugénio encontramos numerosas recordações da sua obra, como aquela em que dá conta de uma sua viagem a Espanha, para lá trabalhar um número sobre Portugal da revista Ínsula, “a melhor revista de momento em Espanha”, recordando figuras como Ángel Crespo, que foi tradutor e arauto da poesia portuguesa, explicando que o fazia “por serem raríssimas tais manifestações de simpatia pela nossa cultura”.

Jorge de Sena dá conta de acontecimentos e movimentos naquela região ocidental dos Estados Unidos, como “um ano lectivo pavoroso de agitações, brigas, indecisões” (1970), ou de um encontro que constituiu “uma coisa triunfal para o Camões saltar para fora do círculo lusitano” realizado no Estados Unidos, e de uma sua conferência na Universidade do Texas. E além de “um afetuoso abraço de Mécia”, encontramos um poema que agora escrevi e creio dos mais sérios e profundos que já compus”, que termina

O Deus que nos possui além dos astros

lá onde o Nada se revela ele mesmo.

Uma curiosidade: Em carta de 24 de julho de 1970, afirma Eugénio: “Espera-se a todo o momento a morte de Salazar”.

Em maio de 1974, dando conta dos movimentos de então, não esquecendo as Dialécticas da Literatura de Jorge de Sena, entretanto publicadas, escreve: “Agora aqui ninguém pensa em poesia, pois o que se vende, como podes imaginar, é tudo aquilo que durante anos não pôde circular, particularmente a política”.

Jorge de Sena faleceu em 4 de junho de 1978. E m 5 de junho Eugénio escreve a Mécia de Sena “quase sem palavras, só para um abraço emocionado, e não só pela perda do Jorge – um dos raros portugueses universais do nosso tempo que nos morre, como já tive ocasião de dizer publicamente – mas também por si”.

E no dia 9 de outubro de 1978 envia-lhe um poema “A Jorge de Sena, no Céu da Califórnia”:

Não te faltou orgulho, eu sei

Orgulho de ergueres dia a dia

Com mãos trementes

A vida à tua altura

-mas a outra face, quem a suspeitou.

Andaste por muito lado a ver se o mundo

Era maior que tu – concluíste que não.

Tiveste mulher e filhos portugueses

Repartidos pela terra,

E alguns amigos, entre os quais me conto.

E se conta o vento.