O Cinema visto pela Teologia (69): “John Wick 4”

Uma leitura do filme “John Wick 4*

​​Por Alexandre Freire Duarte

Não gosto de porrada, muito menos de, como disse Jorge Amado em “Os subterrâneos da liberdade”, «porrada de criar bicho». Mas os pedidos foram insistentes. Que pode dizer a teologia de um filme ultraviolento como este “John Wick 4” – quarto numa série em que, admito, desconheço os precedentes –? Já lá vamos, mas, antes, a habitual apreciação ao filme em si. Este trata-se de uma obra de ação brilhantemente dirigida, espetacularmente filmada e com excecionais trabalhos de duplos que fazem da brutalidade permanente uma genuína ópera elevada a um estatuto genuinamente mítico.

Keanu Reaves, nos cerca de 10 minutos (de mais de 150) em que não está a pelejar, consegue pronunciar cerca de 20 palavras e manter incólume o seu aspeto e ar taciturno, cansado, estoico e tão carismático como anticarismático. Isto vai em linha com uma história clara e propositadamente linear, mas que, mormente quando entra em cena o lendário Ian McShane, está incrivelmente repleta de momentos estilosos (elucidativos do que se está a ver) de humor e de reviravoltas no meio de cenários belamente luxuriantes.

Bom, caros alunos (que pediram o meu visionamento deste filme e a redação deste texto), eis o que, como teólogo, “John Wick 4” me sugere. Desde logo estimo que o tema central é o da morte. O que ela é; como dela escapar; como viver face ao que esperar dela. O terrível é que, apesar de uns brevíssimos clarões de reconhecimento do valor e do sentido (na amizade, da recordação do amor, no autossacrifício e em reflexões religioso-espirituais), esse tema é tratado no seio de um entendimento niilista do mundo e da autocompreensão das personagens, a ponto da morte ser a única escapatória para a própria morte. Mas fuga para onde? E porque razão? O nada não dá nada e acaba-se a nada ser, mesmo no caso deste John Wick que oscila entre o agnosticismo e a fé (cristã). O mais danoso pecado é (por se negar a, ou desgostar da, vida) parar no amor que a guia.

Ficar obcecado com a, ou gostar de um lazer baseado na exploração gritante da, morte, dever-nos-ia fazer parar, qual STOP na nossa vida espiritual cristã. Sabemos que a morte espiritual foi vencida pelo amor do Senhor na Sua Páscoa, e, por mais que nos afeiçoemos àqueloutra morte fruto do desamor, podemos sempre regressar a Cristo e à Sua Esposa. Basta querermos. A morte biológica, essa, é que é nada para nós. Aliás: é o passo para o tudo; é o renascer (não por troca, mas por mudança) para um estado outro em Deus, no qual estaremos mais vivíssimos, alegres e repletos de amor do que nunca.

Todavia, neste nosso mundo, em que escondemos a morte, e, a par, a usamos como divertimento, acaba por acontecer uma dessensibilização face a ela e ao seu horrífico ostentar. Acaba-se por viver entrincheirado numa vida sem propósito, exceto o de se distrair com qualquer coisa, para camuflar o não se ser capaz de (auto)questionar de frente, esperando falecer numa aparente “morte boa”. Aparente, pois, como também vemos nesta obra, foi-se retirando Deus da existência. Mas não é a existência de Deus que é uma projeção imatura – como disse Freud. A ideia da Sua inexistência é que o é.

A quem, na morte biológica, entregar a vida se não se cultiva algo para darmos, nem nos relacionamos com Outrem para sermos acolhidos? Todo este filme é a antítese da Alegria-Nova do Evangelho, em que a força não é violenta e o amor nunca é razão para o ódio, antes são um desequilibrar, no bem, de quem nos fere e os invita a pensar.

(* EUA, 2023; dirigido por Chad Stahelski; com Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Ian McShane, Donnie Yen, Bill Skarsgård e Shamier Anderson)