A complexidade da morte sem penalização

Por Jorge Teixeira da Cunha

Num ambiente de melancolia e até de desinteresse, soube-se que tinha sido promulgado o decreto que estabelece as condições em que a morte medicamente assistida não é punível por lei (Decreto nº 43/XV). Daqui até vermos alguém a usar essa estranha faculdade ainda vai levar tempo, pois não se vê vontade de levar por diante a sua regulamentação por parte de quase ninguém. Mas veremos o que vai acontecer.

Foi corajosa a expressão de tristeza manifestada pelo Papa Francisco, com toda a repercussão que tem a sua voz. Uma vez entrada em forma de lei, esta opção da nossa sociedade ainda nos merece alguns comentários.

Uma primeira coisa que podemos dizer é que esta evolução legislativa está em linha com o que têm sido aprovadas em diversos países. A despenalização de certos comportamentos é vista como um progresso da liberdade. Foi a despenalização do aborto, agora da eutanásia e do suicídio assistido. Em breve será da prostituição e talvez das drogas. Porém, há algo muito intrigante e cuja regra é de decifração difícil que é o facto de outros comportamentos, como simples consumo de tabaco e de bebidas alcoólicas, tender a ser criminalizado cada vez mais. A lógica das preferências valorativas dos nossos contemporâneos não é facilmente compreensível. Temos de ir observando e intervindo com paciência.

Esta observação leva-nos a outra que se prende com a discussão sobre o fundamento do nosso sistema jurídico. A tradição cultural a que pertencemos, herdeira da Grécia, de Roma e do judeo-cristianismo, tem encontrado o seu fundamento naquilo que genericamente se costuma chamar a intocável dignidade do ser humano, expressa de muitos modos, mas, nos últimos três séculos, condensada no conteúdo dos Direitos Humanos. Ora, as leis despenalizadoras de que se trata no aborto e na eutanásia colocam-nos num horizonte diferente deste. Onde se situa o fundamento do direito a partir de agora? Parece haver um deslizamento da ética do direito para outras regiões da realidade, como sejam a experiência individual, o sentimento de si. A ser verdade, esta evolução levanta-nos um grande número de problemas, onde a teologia e a sua moral tem um grande papel a desempenhar.

A experiência espiritual do ser humano é uma boa forma de começar. Mas reparemos que essa experiência é feita de afecto, de palavra e de inteligência, de consciência e de responsabilidade. Do ponto de vista teológico, esta experiência tem um conteúdo básico: a vida sentida é indisponível pelo indivíduo, que não controla a sua origem, nem o seu fim, e tem de deixar dar-se por outrem aquilo que, não obstante, lhe pertence. Uma tal experiência mostra que a existência é sofrida, antes de ser afirmada e partilhada.

Estamos já a ver o ponto em que queremos tocar. O decreto sobre a morte medicamente assistida, ao assentar numa ideia de sofrimento mensurável como fonte de decisão justa e moral, está a meter-se por um caminho de grande complexidade e sobre o qual há mais perplexidades do que certezas. Como se mede uma dor? Como se relaciona a dor e o sofrimento? O nosso Legislador não ponderou com cuidado a ambiguidade dos conceitos que usou e sobre os quais assenta o fundamento da decisão justa em matéria de disposição da vida terminal, seja do sujeito a respeito de si mesmo, seja da sociedade diante do sujeito terminal. Esta lei coloca-nos diante de problemas insolúveis.

Há, pois, muito que fazer por parte da teologia moral, da antropologia e de outros saberes abertos com amplitude ao mistério indecifrável do ser humano. Mais do que opor-se, por dever de ofício, à lei da eutanásia, compete à nossa pastoral escutar muito o mistério divino latente e patente no espírito humano. Por esta via, o seu contributo é decisivo para discernir em que medida os caminhos do direito e de moral são caminhos de liberdade ou são caminhos de servidão, caminhos de abrem o porvir ao bem, ou repetem aquilo que vem de um passado pouco glorioso.