O Cinema visto pela Teologia (67): “Justiça para Emmett Till”

Uma leitura do filme “Justiça Para Emmett Till*

​​Por Alexandre Freire Duarte

“Justiça Para Emmett Till” é um poderoso drama biográfico que, baseado em dolorosos factos reais e apresentado a partir da ótica da sua protagonista, mostra-se desprovido de desonestidade e sensacionalismo. Na verdade, por mais chocante que seja a Pietà do filme – imprópria para estômagos mais delicados –, a sua oportuna lentidão faz dele, nos momentos oportunos, uma obra surpreendentemente astuta e comedida.

Todo o elenco é excelente, mas Deadwyler emerge da complexidade ubíqua da trama e presenteia-nos com um desempenho inolvidável, alteando a interpretação da intensa vivência (privada e pública) da dor, raiva, amor e luto de uma mãe a um nível natural e tocante que nos fere a alma. No fundo, esta obra é tão gentil quão intransigente no capitalizar a mudança que a figura principal viveu, ao passar do seu “momento Pietà” para aquele de mostrar publicamente o seu filho. E isto, no meio de violências e fricções sociais incómodas, vincadas pela música intimidante e a contrastar, com decência, com a dolosa beleza da natureza do Sul dos EUA que a fotografia manifesta sem banalizar.

Como teólogo, e como apontei de passagem com a alusão à Pietà, acabei a ver em “Justiça Para Emmett Till” uma afinidade com a visão que a Virgem Maria teve do Seu desfigurado filho e, nesse mesmo momento, ter dado o passo decisivo desde O ver como “meu filho” e passar a se relacionar como Ele como “nosso Deus”. Uma passagem que, neste filme, é simultânea com uma corajosa busca da denúncia do racismo e uma ímpar demanda pela justiça. Inclusive a justiça que se sabe que nunca se alcançará, devido a preconceitos e agruras mentais nunca solvíveis pela psicologia pop que nos rodeia.

Nos nossos dias, às vezes, uma tal passagem é impossível. O alguém dizer simplesmente “quero justiça” pode ser interpretado como uma “difamação” punível com a destruição da sua vida. O cristão não deve ser um “anjinho papudo”. Deve, antes, estar ciente que, quando as coisas se tornam complicadas consigo (e desaparecem os que mais lhe podiam ajudar), só conta com Deus e as forças que este Lhe der. E aceitar que isto é assim é ser heroico no amor (e na fé e na esperança que se abrem de tal amor) vivido no continuar a lidar (se não com harmonia empática, pelo menos com compatibilidade humana e fraterna no Senhor) com aqueles que o injustiçaram e abandonaram.

Quantas vezes não serão esses momentos de abandono que, num sussurro a pedir a Deus misericórdia e força, elevam a vida, exteriormente crente, a uma intimamente cristã em que a dimensão espiritual eclesial se torna patente (se o acolhimento for veraz). Eis o fim do que era invisível (a fé comunitária), seja pela anemia própria, seja pelo desejo dos demais nos ignorarem, desvalorizarem e desprezarem (inclusive com dolo e até prazer).

Mas isto só é possível se forem vencidas as crises de fé resultantes do se passar da dúvida tumultuosa (e inconcebível para quem nunca a viveu) acerca do “onde esteve e está Deus?”, para uma reconciliação – muito difícil e exigente (mesmo na graça) – entre a tragédia que se vive(u) e o facto de Deus ser só Amor. Mais: e viver essa passagem pela doação do que se é (e do que se vive) no amor perdoante. Mas como lograr isto, se vivermos longe do foco do Evangelho? Longe de Jesus a perdoar para n’Ele perdoarmos?

(* EUA, 2022; dirigido por Chinonye Chukwu; com Danielle Deadwyler, Jalyn Hall, Jamie Renell e Whoopi Goldberg)