
Por M. Correia Fernandes
O mundo de hoje tornou-se universo de materialidades e de realidade virtual. Basta observarmos como se depende de imagens, reais ou ficcionadas, cada vez mais ficcionadas para parecerem reais, de mensagens onde a verdade se mistura de forma disfarçada com a mentira, de jogos de vídeo, da busca de suposta influência dos astros e da chamada inteligência artificial, que é artificial mas não é inteligência mas tecnologia. As crianças e adolescentes vivem cada vez mais universos mentais de alienação.
A lei recentemente reaprovada, chamada da eutanásia, na realidade proporcionadora do suicídio assistido, constituiu um exemplo de como os poderes públicos, em lugar de favorecerem e aperfeiçoarem a vida humana, se empenham em prover de legalidade a sua destruição voluntária, apara além de substituírem o acompanhamento e o cuidado pelas pessoas que sofrem pela facilitação da sua eliminação. Recordem-se as palavras do papa Francisco, por ocasião das celebrações do dia 13 de maio deste ano: “hoje estou muito triste, porque no país onde apareceu Nossa Senhora foi promulgada uma lei para matar. Mais um passo na grande lista de países com eutanásia”.
Importa refletir nestas palavras, que lembram a transformação do suicídio num acto médico, que por natureza e formação se destina a valorizar e melhorar a vida e não a facilitar a morte. Sabemos que se tratou de uma decisão política, maioritária mas não consensual, o que significa que o canto de vitória dos seus promotores deve pelo menos merecer algum lamento, pela agressão à consciência dos outros e dos cidadãos em geral.
No entanto, há na sociedade movimentos e propostas reveladoras de que a condição humana, para além de toda a materialidade e desumanidade instalada, busca algo do universo de espiritualidade no concreto da vida. Lembrem-se os acontecimentos destes dias em Fátima, com todo aquele universo de peregrinação e celebração de fé, e o fenómeno açoriano do Senhor Santo Cristo dos Milagres, que constitui a identificação de um humanismo vivencial, onde a fé, a arte, a expressão estética, o universo da espiritualidade se elevam no meio do oceano, fonte devida e expressão da Natureza bíblica que recorda o Génesis: no princípio criou Deus o céu e a terra, a natureza, a vida visível e escondida, uma dinâmica da nossa condição.
O Cardeal Pietro Parolin, que presidiu à peregrinação de Fátima, mostrou-se entusiasmado com a tão grande presença de peregrinos e com as referências à Jornada Mundial da Juventude. São de registar igualmente as palavras do Primeiro Ministro, ao afirmar aos jornalistas que a Jornada, a realizar pela primeira vez em Portugal, é “uma mensagem que o Papa Francisco quer dirigir ao conjunto da humanidade, a partir dos jovens, crentes e não-crentes”, com atenção especial às novas gerações, orientadas criativamente para o futuro. É digno de nota que o Primeiro Ministro reconheça que o Estado laico tenha a capacidade de acolher também os movimentos espirituais como edificação da sociedade equilibrada.
Lembramos que ma investigação conduzida pela Universidade de Estrasburgo, em 2015, mostrava que a inquietação espiritual e religiosa se manifestava em mais de metade da população de um país que nas suas estruturas sociais é laico e que oficialmente cultiva a laicidade, e procura eliminar das linguagens oficiais o elemento religioso. A maioria declara-se “com religião” e a afirmação da tradição cristã e católica continua a revelar-se influente nas estruturas mentais dos inquiridos.
Notava-se por outro lado uma procura de realidades espirituais vivenciadas no quotidiano, de que sobressaem o desejo de se sentir ligado a uma comunidade em que se partilhem experiências espirituais, a vontade de procurar benefício positivo para a vida pessoal e familiar, uma melhor aceitação de si próprio, o encontrar o equilíbrio e paz interior, o sentir-se mais irmanado com a natureza (é interessante como este dado se alia ao propósito de estar à escuta do espiritual e do divino), um distanciamento em relação à vulgaridade da vida quotidiana, o buscar a libertação de um problema, a cura de algum mal físico ou espiritual.
Parece poder encontrar-se em formulações como esta um eco das narrativas evangélicas como “a tua fé te salvou”, de encontrar na superação dos males a luz que ilumina e salva.
Uma definição bem conseguida desta dimensão humana da espiritualidade traduz-se na afirmação “transformar-se a si mesmo para viver melhor com os outros”, o que revela que as pessoas se encontram na procura do diálogo e da partilha de afetos e de tarefas comuns, traduzindo ao mesmo tempo duas dimensões paralelas do eu: a abertura e a convergência.
São muitos os caminhos que se procuram, que vão da prática do ioga à leitura da Bíblia, passando por processos e métodos de autoconhecimento, que podem ajudar a descobrir a personalidade pessoal e novos caminhos da vivência espiritual.
Nestas propostas, as pessoas são levadas não a estar fora do mundo real, o que seria a alienação, mas a inserir-se na modernidade da vida, a dar-lhe sentido. Não se tratará da busca de um sincretismo inconsequente, mas de um enriquecimento interior que dará sentido à presença e à ação na vida.