Carlos V, patrimónios mundiais e lições da História

Por M. Correia Fernandes

No dia em que escrevo, é entregue a António Guterres o Prémio Carlos V. O acto solene da entrega teve lugar no Monasterio de San Jerónimo de Yuste, a alguns quilómetros da cidade extremenha de Cáceres, cujo centro histórico é património da humanidade. Foi outorgante o Rai de Espanha, Filipe VI, e a cerimónia contou com a presença do presidente da República Portuguesa e do seu Primeiro Ministro, bem como do Primeiro Ministro do Governo do Estado espanhol. O evento teve lugar em 9 de maio, Dia da Europa, recordando que o titular do Prémio, Carlos V (1500-1558) foi o soberano europeu mais poderoso do seu tempo, e foi casado com Isabel de Portugal (1503-1539), filha de D. Manuel I. António Guterres salientou o significado do Prémio, afirmando que o recebia em nome das Nações Unidas, na sua qualidade de Secretário Geral. Cáceres, no seu mosteiro de Yuste, foi o lugar de repouso do imperador, que ali terminou os dias da sua vida.

No mesmo dia, dois acontecimentos: era o dia da Vitória na Rússia, que recorda o fim da Grande Guerra com grande desfile militar; e nesse mesmo dia a Presidente da Comissão Europeia, Ursula Van der Leyen visitava Kiev, com a presença de Volodymyr Zelensky, sob a ameaça de bombardeamentos sobre a cidade.

O Prémio Europeu Carlos V (1500-1558), que foi imperador do Sacro Império Romano germânico, lembra a sua qualidade de Rei de Espanha, que o foi a partir de 1516. Criado pela Fundação Academia Europeia e Ibero-americana de Yuste, é atribuído, desde 1995, “para homenagear o trabalho de pessoas, organizações, projetos ou iniciativas que, com o seu esforço e dedicação, tenham contribuído para o conhecimento geral e valorização dos aspetos culturais, sociais, científicos e dos dados históricos na Europa, bem como do processo de construção e integração europeia”. E agora num âmbito mais alargado até às Nações Unidas, na pessoa do seu secretário-geral «pela sua acreditada, ampla e longa trajetória de vida dedicada ao compromisso social, ao processo de construção europeia, à promoção do multilateralismo e à dignidade humana”. Lembra-se que o prémio já contemplou dois portugueses: em 2014, José Manuel Durão Barroso, que foi presidente da Comissão Europeia (2004-2014), pelo seu compromisso a favor da unificação e no processo de integração europeia; em 2004, Jorge Sampaio (1939-2021), pelo seu papel na defesa de presos políticos, na oposição à Ditadura.

As lições do passado

Para quem teve oportunidade de percorrer em dias recentes os mesmos espaços, todos património da Humanidade, este evento assume também o aspecto simbólico de reunir o percurso de civilizações que se encostaram umas às outras ao longo dos séculos: os romanos, os visigodos, os árabes e a partir do século XVI os reinos cristãos da Península.

A interligação entre estres elementos e momentos históricos constitui um universo único, pelo seu valor humano e cultural. Houve lutas, houve guerras, houve vencedores e vencidos, houve violência e destruição. Mas de tudo o que ficou e permanece é o valor cultural, a sabedoria e criatividade das gerações, a expressão do humano pela arte, a construção do que resiste ao tempo, o espírito que percorre os meandros das vidas e das mortes e engendra novas vidas que esperamos agora imbuídas do espírito da paz.

No centro histórico da cidade de Cáceres encontramos em torno da típica Plaza Mayor, um ex-libris das cidades espanholas, um universo medieval, de raízes romanas, judaicas, muçulmanas e cristãs, de que sobressai a catedral de Santa Maria, em que um Cristo negro, objeto de especial veneração, simboliza o encontro de culturas. Na sua Cuesta de la Compañía, sobressai a igreja da Companhia de Jesus, dedicada a S. Francisco Xavier e edificada no estilo maneirista e barroco das edificações da Companhia em tantas cidades europeias. A catedral gótica de Santa Maria é uma “concatedral”, visto a sede do Bispado é a vizinha cidade de Coria.

A passagem por Mérida, a Emerita Augusta que foi capital da Lusitânia, constitui um tratado de civilização romana, com o seu anfiteatro de espetáculos circenses, o teatro, a grande ponte romana, e um extraordinário museu, em que sobressaem os mosaicos que do chão foram reedificados em paredes, como se fossem grandes  quadros de museu, que esta solução permite apreciar na sua constituição e desenhos.

Mais que tudo, a cidade de Córdoba, onde os vestígios romanos ficam completamente envolvidos pela soberba mesquita, segundo alguns especialistas o mais notável monumento de Espanha, pela qualidade da sua construção e pelo cuidado da sua preservação. Edificada em meados do século VIII (756-784), após a queda do califado de Córdoba, em 1236 perante orei Fernando III, foi convertida em basílica cristã, com a manutenção e aproveitamento da beleza e criatividade da sua construção original, onde as arcadas árabes se tornaram ogivas cristãs, na mesma busca do sentido de Deus.

Granada, cuja queda se verificou em 1486, com a capitulação do seu último rei, Boabdil, perante os reis católicos, deixou outro dos grandes monumentos de origem árabe em todo o mundo: a Palácio da Alhambra, que permanece na sua estrutura original, rodeado pelos jardins de Generalife, envolvidos pelos bairros judeus, árabes a cristãos que os rodearam, até à abadia do Sacromonte. O circular Palácio de Carlos V é ícone desta passagem do árabe ao europeu.

Em Granada, no tempo de Isabel a Católica, se edificou a chamada “capilla real” em estilo gótico, vulgarmente dito plateresco, parecido com o nosso manuelino, estabelecendo a ligação entre o gótico original e o mundo renascentista. A seu lado, a imponente catedral, obra do célebre arquitecto, Alonso Cano (1601-1667), edificada ao longo do século XVII.

Dois monumentos, entre tantos, merecem atenção: a Cartuja, obra de uma originalidade impressionante, edificada pelos monges, onde os traços celebram uma arte afastada do mundo mais rica de significados; e a basílica de São João de Deus, o “português de Granada”, como lhe chama uma conhecida biografia, homem de uma prodigiosa imaginação criadora, que reuniu a fé e generosidade humana ao elemento social e caritativo, com a fundação de um hospital que se tem remodelado até aos nossos dias.  Em torno deste universo se aprimoram as dimensões da expressão artística, que nos ensina que a arte constitui uma expressão das mais fundas capacidades do espírito humano: aquele que constrói fraternidade edifica também a sua expressão artística.

De Sevilla não há muito a dizer, porque a própria cidade nos diz tudo. A sua imponente catedral, a segunda maior europeia depois de São Pedro, traduz um universo de história, de arte e de cultura. Construída a partir de meados do século XV, a sua nave maior, embora truncada pelo coro que se colocou nas catedrais espanholas para funcionalidades litúrgicas, de mais de cem metros de comprimento, termina num grandioso retábulo que encerra todo o mistério e toda a veneração dos símbolos cristãos: Santa Maria, os apóstolos, os grandes santos da cristandade e os ritos da devoção popular.

Lá se encontram os túmulos de figuras centrais da história e da cultura peninsular: Cristóvão Colombo, Afonso X, o Sábio, tão importante na valorização das línguas peninsulares.

Importa trazer à memória outra figura da Igreja, Isidoro de Sevilla (560-636) que, quase dez séculos antes, evangelizou os povos visigóticos e deixou em seu nome a obra fundamental, Etimologias, a primeira enciclopédia do saber do seu tempo: Gramática, Retórica, Direito, Medicina, Matemática, para além da Teologia e das Ciências do seu tempo, incluindo a geografia da terra, as navegações, e a agricultura.