Uma leitura do filme “Regresso a Seul” *
Por Alexandre Freire Duarte
Há filmes em que a personagem principal é o filme. Em “Regresso a Seul” estamos ante algo de análogo, mas com uma subtil diferença: as personagens da vida da atriz principal são quase tudo. Admito que a narrativa, cheia de inflexões, é belamente melancólica e com laivos de poderoso romantismo que evita juízos apressados; a direção é cuidadosa, natural e com ricas mudanças de tonalidade; a fotografia (magnética nas suas tonalidades alagadiças) e a música (perfuradoramente plasmática) estão em perfeita sintonia com o somatório de intencionadas incongruências com que contactamos.
Mas, com o seu tremendo (e subtil) domínio de uma interioridade frustrante e incerta, é mesmo Park Ji-Min quem dá o extra especial a esta obra carregada pelo peso emocional de uma reinvenção sem aparente resolução. Irresolução esta que, por vezes, nos sufoca. A sua expressividade controlada é uma perfeita mimese da sua complexa história até a vermos pela primeira vez e, daí em diante, só se somam incertezas que toda a Park Ji-Min carrega até à distorção característica de quem está num fluxo constante de afetos contrastantes em amadurecimento. Da vulnerabilidade à assertividade, passando pela ternura, toda ela é um misterioso poema a ser escrito, de hiato em hiato, diante de nós até uma cruel e casual esperança que “emprenha”, quase até ao “parto”, este filme.
Durante anos lecionei uma disciplina, na Universidade Católica – embora fora da Faculdade da Teologia –, cuja parte significativa dos alunos se poderão ver retratados neste filme. Heróis imperfeitos em busca de um “porto seguro” no meio do hedonismo a que se entregam para mascararem essa busca. Hedonismo, sobretudo sexual e alcoólico (aquele que, como me disse uma aluna, “dá ‘voz de tabaco’ pela manhã”), ao qual quanto mais se entregavam mais sentiam que não lhes dava inteireza, mas que dele não saiam por não terem “raízes” ou “casas”. Ou seja, “faróis” que os guiassem no meio do torvelinho da vida jovem-adulta em que, quiçá pela primeira vez de modo adulto, se davam conta, chocados e revoltados, da inconstância e insegurança das suas vidas.
Não os julgo, nem (como cristãos que somos) os devemos julgar. E isto porque, talvez, o metamorfosearem-se até terem olheiras (sob os olhos do rosto e do coração) do tamanho de constelações, era a “boia de salvação” escapista que conheciam. Definiam-se, não pelo que lhes poderia dar segurança (esse Deus-Amor que tantos tenta[ra]m banir da realidade), mas pelo que não queriam ser, formando e reformando máscaras que reprimiam expressões ao mesmo tempo que lhes davam falsas carapaças de segurança acerca do real. Carapaças que se partiam ao mais pequeno aceno de uma opinião diversa.
Como teólogo tentava fazer-lhes ver, de modo assaz indireto, que estavam apenas a construírem identidades que eram fábulas na água. Pior: identidades disjuntas e fracturadas que tarde ou nunca se emendariam, por mais “banha da cobra” de novas terapias que viessem a usar. As nossas “raízes” e a nossa “casa” fundamentais estão num Cristo quebrado e inteiro que é o Cristianismo e a Igreja. Um Cristo que nos apela a sermos quase-sacramentos, alegres e disponíveis, de uma Sua presença universal, mesmo nos momentos e lugares em que menos esperávamos: esses mesmos em que estamos, e no qual Ele pode purificar os nossos instintos, levando-os à sua consumação no amor.
(* França, Coreia do Sul, Roménia, Camboja e Catar, 2022; dirigido por Davy Chou; com Park Ji-Min, Oh Kwang-Rok, Guka Han, Kim Sun-Young e Louis-Do de Lencquesaing)