
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
Há quase 60 anos, o II Concílio do Vaticano realizou uma verdadeira conversão na forma de a Igreja se ver a si própria. Em vez de «sociedade desigual», um mistério de comunhão à imagem da Trindade. Em vez de uma pirâmide com a Igreja discente, submissa, na base e, por cima dela, e dela destacado, o «clero» em camadas sucessivas de ordens menores e maiores, «baixo» e «alto clero», até ao vértice, uma grande roda, um grande círculo em que todos os batizados se dão fraternalmente as mãos como fiéis de Cristo e no Amor do Espírito, comungantes, numa plataforma comum em que há distinção mas não separação ou sobreposição de ordens, ministérios, serviços. A Igreja não deixa nem pode deixar de ser hierárquica, mas o ministério ordenado, origem desta «ordem sagrada», não se coloca em relação com o sacerdócio universal de todos os batizados numa posição de mais e menos, acima e abaixo, porque não é de grau – mas essencial – a diferença entre ambas as formas de participar no único e perfeito sacerdócio de Cristo. Consequentemente, ambos esses modos de ser sacerdote se colocam frente a frente, no serviço e acolhimento recíproco. Na verdade, quem está mesmo acima é Cristo, Mestre e Senhor, Sumo-Sacerdote do sacrifício que consistiu na entrega de si mesmo, no Espírito eterno, em adesão filial ao Pai e no serviço de amor aos discípulos, curvando-se para lhes lavar os pés, descendo ainda mais até às alturas abissais da Cruz redentora.
A receção desta eclesiologia convertida começou logo, durante e após o Concílio, não obstante todas as crises inerentes aos tempos de viragem epocal e de profunda mutação cultural que atravessamos. E continua. Recuperou-se o sentido e valor da «participação» – não apenas na Liturgia mas em toda a plurifacetada missão da Igreja – que é da ordem dos fins, direito e dever de todos os que integram o «sacramento de unidade» que é o Povo Santo reunido e ordenado sob a direção dos Bispos. Começou a falar-se e a urgir-se a «corresponsabilidade» que deve ser orgânica. Por isso criaram-se ou restauraram-se órgãos e instâncias de participação e corresponsabilidade. É o que o Papa Francisco procura hoje sustentar e incrementar com a linguagem e prática da «sinodalidade».
Uma dos vetores desta receção é o da ministerialidade. Neste capítulo, a «reformação» – assim dizia o nosso Bartolomeu dos Mártires em tempos tridentinos – é necessária para superarmos o clericalismo associado à eclesiologia herdada e persistente. Porventura será necessário o suceder-se das gerações para que as velhas práticas, estilos e tiques se modifiquem. Se bem que, por vezes, se tenha a sensação de que as gerações mais recentes, que não viveram a primavera conciliar nem o verão quente que se lhe seguiu, sejam mais arcaicas (com toda a cibernética de nativos digitais) que as de há cinquenta ou quarenta anos…
No capítulo da ministerialidade, São Paulo VI quis «desclericalizar»: a reforma veiculada pelo m.p. Ministeria quaedam (15/08/1972) suprimiu o rito da tonsura como porta de entrada no estado clerical e reformou a disciplina das chamadas, até então, «ordens menores» (redimensionadas e reduzidas a duas: Leitorado e Acolitado), transformando-as em «ministérios laicais» instituídos, radicados nos sacramentos da Iniciação cristã e não no Sacramento da Ordem e, por isso, abertos aos christifideles laici e não reservados ao clero como até então. Às Conferências episcopais foi deixada a responsabilidade de propor a instituição de novos ministérios que correspondessem às necessidades reais da missão da Igreja nos seus territórios. A par dos ministérios laicais, Paulo VI deu seguimento ao propósito conciliar de restauração do diaconado como grau permanente da hierarquia, proposto tanto a fiéis casados como celibatários (LG 29). E dado que o ingresso no estado clerical se passou a fazer pela ordenação diaconal, abriu-se a porta a um novo tipo de clero, com vida conjugal e familiar, com variada experiência profissional, inserido no mundo, mais capacitado pela sua própria condição de vida para assegurar o vai-e-vem não só entre o presbitério e a nave das nossas Igrejas nos atos de culto, mas também entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio universal dos batizados/crismados em todos os contextos da missão eclesial.
A ordem lógica e consistente da receção desta “reformação” eclesial, progredindo pelos círculos concêntricos de uma eclesiologia de comunhão, seria:
1) Formação, promoção e instituição dos ministérios laicais como corolário da condição carismática e ministerial de todo o povo santo de Deus;
2) Restauração do diaconado permanente e concomitante renovação do ministério ordenado no seu todo: identidade, vida e missão.
Em que ponto estamos deste processo?