Por Jorge Teixeira da Cunha
A encíclica “Pacem in Terris” (A Paz na Terra), do Papa João XXIII, fez 60 anos no passado dia 11 de Abril. Vale a pena regressar a esse texto de merecida repercussão extraordinária no mundo de então. Mas a sua inspiração pode ser actualizada para os dias de hoje, pois a guerra persiste na Europa e em diversos lugares do mundo. O contexto daquele ano de 1963 explica a atenção que foi dada ao texto pontifício, mas o seu conteúdo é inovador a diversos títulos. Havia tantas coisas boas e tantas coisas más naquele tempo. A aventura das viagens espaciais, a recente construção do muro de Berlin, a crise dos mísseis nucleares em Cuba, o Concílio Vaticano II, a guerra do Vietname, os gloriosos trinta anos de desenvolvimento da Europa. O próprio Papa apenas sobreviveu poucos meses ao seu texto e, mais para o fim desse ano, o Presidente Kennedy ia ser assassinado. Neste caldo de coisas novas e velhas, o texto da “Pacem in Terris” foi recebido com enorme esperança e a voz da Igreja era escutado com grande benevolência tanto no Ocidente como em outros contextos do mundo.
A encíclica joanina é um texto muito interessante pela forma como coloca a questão da guerra e da paz. A nosso ver, é a primeira vez que um texto pontifício desloca o ponto de vista da doutrina social da Igreja, sem hesitação, para o terreno da ética, abandonando o horizonte um tanto paternalista dos interesses da Igreja na cena internacional, e colocando-se no centro da acção da graça divina que desencadeia a estima de valores éticos universais nas culturas e na boa vontade humana.
Por este caminho, a proclamação da paz passa para o centro da atenção do discurso magisterial. A paz é um imperativo moral para todos, na base da força da razão e não da razão da força. A guerra passa a ser vista, de forma decidida, como uma derrota da razão e não como um caminho de para resolver conflitos. A guerra nunca mais pode ser justa em nenhuma circunstância, mesmo como caminho para repor o direito violado e como forma legítima de defesa. Esta via tinha sido seguida já por Bento XV, cuja convicção ia claramente neste sentido. Mas em 1920, o tempo ainda não estava maduro para esta opção. No entanto, não pode deixar de ser assinalado que a “Pacem in Terris” é continuadora do texto desse ano, em que ainda se fazia o balanço da Grande Guerra de 1914-1918 e que lava o título “Pacem Dei Munus” (a Paz como dom de Deus).
Para fundar o seu ponto de vista, a “Pacem in Terris” coloca no seu centro uma proclamação de “direitos humanos”. A recepção dos “direitos humanos” no magistério da Igreja tem uma longa história. Passamos de uma recusa liminar de Pio IX em aceitar esta reivindicação e expressão moderna da dignidade humana, para uma aceitação do valor humanista da realidade dos direitos humanos, como fundamento da convivência internacional e da ordem moral política. É um momento muito importante da confiança da Igreja no valor do humanismo autêntico e das reivindicações da modernidade. Esta opção não é isenta de discussão. A discussão existiu e continua a existir sobre este assunto. A “Pacem in Terris” tem o cuidado de assinalar que os direitos nunca são separáveis dos deveres, nomeadamente do dever de escutar a revelação divina que é a última garantia da verdade do nosso conhecimento moral. De qualquer modo, esta opção deu à Igreja a possibilidade de se colocar no centro do debate ético e de ver a sua autoridade de instância moral muito mais respeitada nos areópagos do mundo.
A actualidade da “Pacem in Terris” é indiscutível para os nossos dias de guerra na Ucrânia e em diversos outros lugares da Terra. Mais do que nunca nos dias que correm é necessário proclamar que a guerra como forma de resolver conflitos é uma opção irracional. O apelo à negociação por todos os meios continua em cima da mesa como caminho para a paz, caminho preferível a todos as formas de mobilização para guerra que vemos todos os dias, mesmo por parte de hierarcas, políticos e militares cristãos.
O Papa Francisco distancia-se deste coro quando, decididamente, chama a atenção para a compaixão com as vítimas como forma de confundir a racionalidade dos beligerantes. Os “ventos gélidos da guerra”, expressou que usou recentemente, coloca-o noutro tom para condenar todas as guerras.