
Uma leitura do filme “A Baleia” *
Por Alexandre Freire Duarte
Há filmes e depois há calamidades onde a água entra por todo o lado. Felizmente que, nesta obra, a personagem principal é chamada, depreciativamente, daquilo que dá nome a “A baleia”: uma “baleia”. Entenda-se: uma (auto-)reclusa montanha mórbida de carne que aprisiona, num lento suicídio, um notável ser humano. No papel deste homem, Fraser é excecional, esplêndido, comovedor, admirável e capaz de compor uma orquestra de sentimentos – inteligentes, subis e melancólicos até ao humor –. Em suma: com ele estamos numa daquelas ocasiões em que nos esquecemos que estamos ante um ator.
O problema deste filme é que, afora o papel comovedor de Chau e histérico de Sink, não passa de uma mediocridade: estamos perdidos em relação a aspetos essenciais da vida da personagem de Fraser e a fios narrativos que não se arranjam; o filme passa o tempo a olhar brusca e estranhamente para si, com aparatos cinematográficos indelicados e despicientes (como os bailados das câmaras); uma banda-sonora, às vezes, claramente manipuladora; e, enfim, a generalidade das personagens a não passarem de caricaturas destiladas. Felizmente que Fraser, honesto e perturbante até à dor, eleva o filme e, com os seus diálogos, permite que ele passe, com impacto, uma mensagem importantíssima.
Para mim, como teólogo, “A baleia” é um recordar que, sejamos quem formos quando somos vistos externamente com desconfiança e rejeitados – eu, no meu caso, com o nariz perdido da Esfinge do Cairo –, podemos viver essa dor em união positiva com a rejeição vivida por Jesus, que cruciou o Amor. Não há razão para duvidarmos que – digam o que disserem de nós (e não falamos “mal” uns dos outros, mesmo em Igreja?) – somos “órgãos” essenciais do Seu Corpo. O nosso papel (por mais que, como Jonas e Job, nos agastemos com Deus) é o de viver e realizar a Sua vontade: amar mais e melhor.
Logo, não há motivo para sermos vítimas, resignadas ou revoltadas, dos tormentos que nos infligiram e nos infligimos fruto disso. Somos sempre mais do que isso e podemos, dentro das nossas limitações, viver na assertividade do amor que comunica um perdão (encrustado no definitivo do próprio Jesus e que pode fazer maravilhas) mesmo a quem mais nos repudia e despreza (às vezes, nós mesmos). Claro que isso, embora nos faça crescer espiritualmente por decorrer do amor, não “salva” ninguém (nem a nós), mas pode ajudar a que a salvação seja (melhor) conhecida, aceite e assumida.
Jesus tem razão quando alerta para não nutrirmos sentimentos negativos para com os nossos irmãos, nem para nos preocuparmos com o futuro. Mas isso é difícil, devido ao nosso egoísmo que nos impede de ver o bem que realizamos e, sobretudo, em quem já nos vamos tornando. É ele que nos causa o medo paralisante; é ele que corrói a certeza do valor que possuímos; é ele que bloqueia a nossa compaixão para com quem nos feriu; é ele que nos impede de sermos honestos na caridade e, assim, quase nos desumaniza.
Pior: é ele que nos faz desesperar quando não alcançamos mudar seja quem for, derrubando, como se fosse um “castelo de areia seca”, a perseverança de que precisamos para sofrer com quem nos faz sofrer (quiçá devido a maiores dores interiores suas que até ignoraremos) e, dessa forma, fazermos do nosso Mundo e da nossa Igreja lugares de genuíno acolhimento para todos, começando por mudar, já agora, o nosso pobre coração.
(* EUA, 2022; dirigido por Darren Aronofsky; com Brendan Fraser, Sadie Sink, Hong Chau, Ty Simpkins e Samantha Morton)